Durante toda a sua vida artística William Shakespeare teve de conviver em ambientes hostis, impregnados pela peste. Muitas foram as vezes que os teatros londrinos foram fechados por longo período, até que as autoridades sanitárias entendessem que a situação estava sob controle. Mas, enquanto estava parado, sem poder encenar suas peças teatrais, o grande dramaturgo aproveitava o momento de isolamento para escrever obras majestosas como Rei Lear e Macbeth, sem falar de seus poemas – pouco apreciados aqui no Brasil, mas reconhecidos como verdadeiras obras-primas da literatura mundial.
A adversidade nunca parou o gênio criativo. Assim como Shakespeare gestou em plena epidemia o seu Rei Lear, muitos outros autores criaram obras-primas em ambientes adversos ou depois de passar por adversidades extremas, como doenças graves, prisões, exílios, guerras e pestes. Memórias do cárcere de Graciliano Ramos é um exemplo de literatura de alto nível retirada da experiência da prisão política; enquanto Albert Camus e Frida Kahlo gestaram suas obras no isolamento imposto por questões de saúde. São tantos os artistas que criaram no exílio, prisão, guerra, pandemia, confinamento ou isolamento que a lista seria quase que interminável.
Diante dessa constatação é que considero válida a pergunta formulada por Flávio de Souza no ensaio ‘O que faz um dramaturgo quando os teatros estão fechados?’ publicado no livro ‘O que você precisa saber sobre Shakespeare antes que o mundo acabe’: Será que algo de bom, ótimo, excelente pode estar sendo causado em meio a tanto pavor, desespero, recessão econômica, desemprego e paralisação de vida cultural – além de mortes, traumas, perdas e danos?’
Baseado na experiência de vida de Jean-Jacques Rousseau, Henry David Thoreau, Graciliano Ramos, Aleijadinho, Frida Kahlo, Albert Camus, William Shakespeare, Victor Hugo, Giovanni Boccacio, Pablo Picasso, Erich Maria Remarque, Miguel de Cervantes … o que podemos esperar em termos de produção criativa no pós-pandemia do Coronavírus? Em março de 2022 estamos completando um ciclo de dois anos de isolamento social motivado pela pandemia e, muito pouco se tem visto anunciar como algo novo e extraordinariamente digno de ser chamado de obra-prima em qualquer setor das artes. Será que tudo ainda está sendo gestado no silêncio anônimo do isolamento domiciliar? Será que tudo estará sendo revelado aos poucos, com o passar dos tempos, no declínio da peste?
A sociedade brasileira, nesses dois anos, conviveu com a morte de 655.000 cidadãos e com a infecção pelo vírus de quase 30.000.000 – isso mesmo, trinta milhões de brasileiros foram infectados pelo coronavírus em dois anos de pandemia. Será que esse ambiente hostil ao extremo, ceifando quase um milhão de vidas, não mexeu o suficiente com a angústia do gênio, como a trincheira da guerra mexeu com Richard Flanagan, Euclides da Cunha e Erich Maria Remarque? Será que nosso tempo gestou a peste mas não gestou o gênio? [magrufloriano2008@gmail.com].