ASILO DAS COISAS … ADOÇÃO DE OBJETOS DE MEMÓRIA

Resolvi, faz algum tempo, ajudar meus amigos a encontrarem um bom lugar para objetos que estão atrapalhando. São objetos que precisam ser descartados não obstante ainda manterem valor de uso e troca, principalmente entre colecionadores. Livro, lápis, caneta, chaveiro, disco, equipamentos eletrônicos, obras de arte, coleções, fotos, documentos … muita coisa boa acaba sendo descartada no lixo por simples falta de opção ou, até mesmo, por pressa em descartar grande volume de objetos. Isso ocorre com frequência, por exemplo, quando uma pessoa migra de uma casa para um apartamento, quando se aposenta, quando vende um imóvel, quando o proprietário morre e o herdeiro não tem identidade com o objeto herdado …

Muitas vezes o proprietário de determinado objeto não tem noção do seu real valor ou faz uma análise imprópria sobre seu verdadeiro estado de conservação. Isso ocorre muito com obras de arte que tiveram suas molduras e chassis atacados por cupins. Obras de arte e móveis antigos infestados por cupim são descartados diretamente no lixo, desconsiderando a hipótese de restauro. Objetos de grande valor são sentenciados ao lixo por uma avaliação apressada e equivocada.

Então, o meu trabalho é encontrar o lugar certo para coisas que estão fora do lugar. É auxiliar os amigos a destinarem corretamente algo que ainda tem seu valor, mas que não está mais servindo para ela. Ajudo a passar adiante deixando duas pessoas felizes: quem doa e quem recebe. Muitas vezes o que atrapalha esse serviço de utilidade pública é a pressa estabelecida pelas circunstâncias. Em muitas situações é ‘aqui e agora’, ‘pegar ou largar’, ‘tem de ser pra ontem’. Se vacilar, acaba tudo indo para a caçamba dos entulhos, junto com os restos de materiais de construção da reforma … Eu passei por várias situações dessas, inclusive, quando do desmanche da casa de madeira do casal Mário e Irene Boemer. Muita coisa estava jogada na varanda da casa em demolição, esperando a caçamba do entulho chegar. Cheguei a tempo de recuperar fotografias, documentos e até obras de arte.

 

Nos últimos dias encontrei o lugar certo para: 300 livros de Psicologia; 100 livros de Sociologia e realidade brasileira; 200 livros de Filosofia; 320 livros de Administração e Logística; 1 quadro de W. Smykalla; diversos desenhos de Deólla; 100 moedas estrangeiras; 10 revistas de pauta musical; dístico da Academia de Letras … Reconheço que alguns livros, notadamente os técnicos e didáticos, possuem prazo de validade muito exíguo. Livros de Direito, por exemplo, tem muita pouca serventia de um ano para outro, porque a legislação muda muito rapidamente, então, a reciclagem é o caminho natural …

Caso típico de prazo de validade vencido é a enciclopédia estudantil Barsa. Hoje, simplesmente, não serve para absolutamente para mais nada. Ocupa muito espaço e não possui qualquer utilidade, senão decorativa. Como as pessoas sempre atribuíram a essas enciclopédias um alto valor, ficam com receio de jogar no lixo reciclado e procuram bibliotecas públicas para o descarte. O número desse tipo de doação é tão grande que as entidades resolveram criar ‘comitês internos de avaliação de doações’ para não terem a obrigação de ficar com tudo que é doado em forma de descarte.

Ao criamos a ACRI – Associação de Colecionadores da Região de Itajaí – nossa intenção era justamente dar um apoio técnico às pessoas que herdam coleções, objetos de arte, móveis e peças antigas … e que não sabem exatamente o que fazer com tudo isso. Ajudar a encontrar um bom lugar para esses objetos de memória da nossa comunidade é o objetivo da ACRI. Na verdade, a ACRI e eu, em particular, fazemos o mesmo que as entidades de proteção aos animais quando buscam facilitar a adoção de animais recolhidos nas ruas da cidade. Nosso trabalho também é da busca da adoção de ‘objetos de memória’ para que eles não acabem na lata do lixo. Assim, garantimos a preservação da história de nossa comunidade através de objetos de coleção e decoração.

 

 

CECÍLIA MEIRELES E SEU GRITO DE LIBERDADE

No colégio era comum estudarmos os grandes escritores nacionais relacionando seus nomes e obras em uma listinha quase impossível de ser decorada. Aliás, lista era o que não faltava em tempos de provas. Geralmente eram listas contendo os ‘dez mais’: rios, montanhas, lagos, países … Quem conseguia decorar estas listinhas era considerado aluno nota dez. Mas, na escola que nos ensinava quais eram as dez maiores montanhas do mundo seus professores sequer subiam o Morro da Cruz. Falavam dos grandes rios e não molhavam seus pés no Rio Itajaí. Os alunos ‘nota dez’ decoravam listas dos escritores e não liam seus livros. Eram listas, apenas listas, formando uma cultura vazia. Foi nesse contexto que tive contato com o nome da poetisa Cecília Meireles e sua grande obra: Romanceiro da Inconfidência. Cecília era um nome na lista, junto com Castro Alves, Olavo Bilac, Machado de Assis, José de Alencar, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos … Dependendo do professor, era a única mulher incluída entre tantos homens. Vez e outra apareciam os nomes de Clarice Lispector, Ligia Fagundes Teles e Raquel de Queiroz … mas, o mundo era dos homens.

Apesar de nunca ter sido um aluno ‘nota dez’ sempre guardei na memória a listinha dos maiores escritores brasileiros e, ao longo da vida, tentei lê-los. Alguns dos meus ‘eleitos’ passei a recomendar aos meus alunos do Curso de Jornalismo da Univali (Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Lima Barreto …) argumentando que o bom jornalista era antes de tudo um bom leitor. A grande maioria fazia ouvidos moucos, mas sempre tinha aquela minoria valiosa que lia e, depois, vinha compartilhar impressões de leitura. Para estes, não se tratava de mais uma listinha ou uma extensa referência bibliográfica da disciplina ‘Realidade Brasileira’, mas sugestões de leitura de quem leu mais que uma simples listinha para tirar nota em uma prova protocolar.

Quando iniciei um curso – fora do horário regular da disciplina de Sociologia da Comunicação – que buscava ensinar aos alunos da Univali a ler cinema, utilizando o método ‘Análise de Conjuntura’, deparei com um curta-metragem intitulado ‘Ilha das Flores’. Ali, aparecia de forma destacada os versos de Cecília Meireles:

 

‘Liberdade – essa palavra

Que o sonho humano alimenta:

Que não há ninguém que explique,

E ninguém que não entenda!’

 

Esses versos passaram e me servir de referência quando o tema em discussão era LIBERDADE. Cecília, a que sempre esteve presente nas listinhas, mas pouco lida Brasil afora, cada vez mais se tornava citação obrigatória em minhas palestras e cursos. Além dos versos acima transcritos, usava também diversos outros versos da escritora, como é o caso ainda sobre liberdade:

 

‘A palavra liberdade

Vive na boca de todos:

Quem não a proclama aos gritos,

Murmura-a em tímido sopro.’

… sobre opressão e injustiça:

‘Toda vez que um justo grita,

Um carrasco o vem calar.

Quem não presta, fica vivo;

Quem é bom, mandam matar.’

… sobre ganância:

‘os homens matam-se e morrem,

Ficam mortos, mas não fartos.’

… sobre o poder da palavra:

‘Ai, palavras, ai, palavras,

Que estranha potência, a vossa!

Ai, palavras, ai, palavras,

Sois de vento, ides no vento,

No vento que não retorna,

E, em tão rápida existência,

Tudo se forma e transforma!’

 

 

Agora, em tempos de reclusão social por imposição da pandemia da Covid, busquei passar o tempo em boa companhia e me propus, inclusive, a reler algumas obras que considerava fundamentais na minha formação intelectual. Assim, acabei relendo o livro de Cecilia ‘Romanceiro da Inconfidência’. Um livro que deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas, notadamente, agora, nesses tempos sombrios que abriga o planejamento, nos compartimentos mais secretos dos palácios governamentais, da retomada sistemática das ideias conservadoras autoritárias. Cecília, portanto, é atual … atualíssima e necessária.

A NOVA LITERATURA ITAJAIENSE E A POÉTICA DE SANDRO SILVA

Aproveitei a Feira do Livro do V FLI – 5ª Festival Literário de Itajaí – para colocar a minha coleção de autores itajaienses em dia. Ao todo consegui agregar à minha biblioteca vinte exemplares. Até agora, já li dois livros de prosa de André Soltau, o livro infantil de Dalila Weiss, os livros de poesias de Samuel Costa e Clarisse da Costa; Giovanni Sagaz; India Alves; Mabel Pessoa Spindola; Eliss Castro… estou lendo o livro de poesias de Sandro Silva. Ao ler a literatura contemporânea itajaiense fiquei com a sensação de que o trabalho autoral dos escritores locais está ganhando uma qualidade excepcional. Na poesia, por exemplo, são admiráveis os textos de Eliss Castro e Sandro Silva.

Sandro Silva, o Sandrinho do Diário do Litoral, remete seu leitor a uma viagem regressiva à poética de Bento Nascimento. Esses dois escritores têm muita coisa em comum, mas destaco o determinismo poético estabelecido a partir de insights contendo sempre a mesma lógica jocosa, com um tom de comicidade que insinua um modo de vida ‘a la Chalaça’. Esse estalo súbito que tanto inspira os poetas – Bento e Sandrinho – tem na sua essência uma carga enérgica de chiste, facécia, gracejo, fazendo com que o poema, mesmo que sério, fique perdido no limbo, entre o triste e o alegre, entre o trágico e o cômico … indefinidamente. O ponto comum entre os poemas de Bento e Sandrinho é justamente essa gênese irreverente. São, portanto, frutos de lampejos, ‘raios que caem de céu azul’ ornamentados por chistes espirituosos.

Claro que Bento e Sandrinho são pessoas bastante diferentes. Quem teve a oportunidade de conviver com os dois sabe muito bem dessas diferenças. Diferenças que estão bem definidas nos próprios versos desses escritores. Bento vivia no extremo da liberdade pessoal e para esse seu território anárquico conduzia sua escrita. Retratava em seu comportamento o cinismo filosófico de Antístenes e Diógenes e não se envolvia muito a sério com nada, de sexo à política. Sua literatura, portanto, era uma peça solta no ar, pura manifestação de seu espírito livre e criador. Já, Sandro Silva tem um histórico de comprometimentos sociais, fazendo que sua literatura esteja sempre engajada.

Ler Sandro Silva, portanto, nos deixa com a impressão de que estamos lendo um Bento Nascimento que resolveu, do dia para a noite, se engajar em causas sociais. Acho, de certa forma, que a literatura de Sandro Silva leva vantagem em relação à literatura de Bento Nascimento. Isso porque, Sandro pega algo muito bom de Bento Nascimento, que é esta mágica de aproveitar insights jocosos para compor versos livres, leves e espirituosos, mas … mas, acrescenta a eles doses generosas de engajamento, de comprometimento com causas sociais emergentes. Eu gosto … e gosto muito!

 

‘Alguns esperam amores.

Outros que a lua apareça,

Cheia e linda.

 

Ela, no ponto,

Cansada da vida,

Só espera o ônibus.’

A ARTE MODERNA COMO TENDÊNCIA

TARSILAPORU – xilogravura de releitura do Abaporu de Tarsila do Amaral produzida por Magru Floriano 2022.

Quando vejo alguma coisa nova acontecendo nos grandes centros, principalmente em São Paulo e Curitiba, cidades que costumo frequentar, sempre fico imaginando quando verei o mesmo acontecendo em Itajaí. Quando algo se estabelece como uma ‘tendência’ nos epicentros culturais do país é inevitável que a onda se espalhe e, mesmo demorando décadas, acaba chegando e influenciando nossas vidas nas bordas do mundo. A tendência seria como as ondas provocadas por um tsunami que ao chegar na praia vai levando tudo de arrasto.

Dia desses, para entrar em um edifício comercial de Itajaí tive de fazer um credenciamento de acesso: apresentar e permitir o escaneamento de documento com foto, preencher ficha, tirar fotografia – sem óculos e sem boné … Imediatamente veio à mente a experiência que tive em São Paulo, há mais de trinta anos, quando visitei uma empresa que vendia equipamentos para estúdio de rádio. Eu estava interessado em equipamentos para a montagem do laboratório de rádio do Curso de Comunicação e, também, para os estúdios da Rádio Educativa Univali FM, cujo processo de criação já estava em andamento em Brasília. Foi uma primeira visita a um fornecedor, mas fiquei tão pouco a vontade que sequer consegui falar direito com os representantes da empresa. Senti como se fosse um intruso, alguém não convidado para a festa. Uma sensação indescritível de estar fora do lugar. Providenciei para sair do local o mais rápido possível.

Depois, andando solitariamente pelas ruas de São Paulo, olhando todos aqueles edifícios, fiquei imaginando como seria difícil a vida em Itajaí se esta burocracia dos edifícios paulistas virasse uma tendência nacional e chegasse à nossa cidade. Demorou um bom tempo, mais de três décadas, mas chegou. E, ao fazer o meu credenciamento para acessar o elevador do edifício itajaiense, percebi o desconforto de muitos outros usuários que chegaram à portaria junto comigo. A reação deles foi muito próxima daquela que tive em São Paulo há décadas.  Um desconforto e uma predisposição inicial de reagir, de reclamar, de considerar tudo aquilo uma inutilidade, um excesso de zelo, uma burocracia desnecessária, etc. Mas, a onda chegou à Itajaí, e veio para ficar em nome da segurança. Ponto!

 

TENDÊNCIA NAS ARTES

 

Circo do Festival de Inverno de Itajaí no pátio da Igreja Matriz.

Lutar contra uma tendência que chega a nós – como onda de tsunami cujo epicentro está em São Paulo ou Nova York – é lutar contra o inevitável. A tendência é uma onda forte que vai arrastar tudo e todos que estiverem à sua frente como obstáculo. Eu senti isso pela primeira vez em um Festival de Inverno de Itajaí, quando foi montado uma grande tenda de circo no estacionamento lateral da Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento para abrigar a exposição de artesanato e arte plástica. Eu apresentei um quadro com conteúdo abstrato – pintei durante as aulas do professor Dinyz Domingos, que tinha ateliê ali perto, em cima do Salão Paroquial – e sofri com o ‘estranhamento’ de todos. Uma frase avaliativa era recorrente: ‘Isso não é arte!’ Uma avaliação que já havia experimentado quando expus dois grandes desenhos na Biblioteca do Colégio Salesiano, por volta de 1975, e, também, durante uma exposição no térreo do Palácio Marcos Konder – antes de virar museu.

A crítica aos meus trabalhos abstratos e surrealistas era tão contundente e direta que acabou fazendo um efeito devastador sobre a minha arte. Assim, num determinado dia, coloquei tudo na lata do lixo e parei com todas as atividades de desenho, pintura, bico de pena … partindo para um exílio voluntário na literatura. Tudo, até 1978, praticamente foi para a lata do lixo. Bem, quase tudo. Isso porque meu primo, Edson Luiz Pedro, retirou do lixo da garagem da minha casa na João Bauer, um desenho intitulado ‘As mortes dos meus Eus’ e guardou por décadas. Um dia, visitando o seu estabelecimento comercial na Avenida Caninana, para minha total surpresa, identifiquei o desenho afixado na parede da loja, próximo ao balcão. Foi aí que fiquei sabendo do salvamento secreto da obra e seu aproveitamento na decoração da loja. Imediatamente pedi para ele me emprestar o quadro, fiz cópia e coloquei o desenho na capa do meu livro de poesias Fogo-Fátuo. Um outro desenho também salvo da lata do lixo – um autorretrato, com minha imagem nua navegando entre estrelas tendo um livro como nave – também foi salvo do lixo e virou capa do livro Como faço poesia. E é só. O restante do que estava em meu poder foi para o lixo mesmo. Esperava, sinceramente, que em companhia das obras fossem para a lixeira também as críticas das pessoas.

Mas aquilo que eu estava esboçando a partir de 1973 era uma tendência nas artes no Brasil desde 1922 – quando da Semana de Arte Moderna de São Paulo – e, portanto, era uma questão de tempo que se firmasse como novo paradigma estético também em Itajaí. Desde 1922 estava derrubado o academicismo e a obrigatoriedade de retratar apenas e tão-somente o real que fosse belo. Novos olhares – como é o caso do cubismo e do surrealismo – implodiram a hegemonia do clássico e suas vertentes. Dide Brandão já havia sinalizado essa tendência, mas entre seus anjos pés-descalço e a imagem de uma miss com seu vestido branco, todos preferiram destacar a obra de feição clássica, deixando em segundo plano os demais trabalhos feitos em linhas retas e traços econômicos.  Ele transitou entre o acadêmico e o moderno, mas a obra que está em exposição permanente no Museu Histórico de Itajaí é o grande quadro da miss e seu grandioso vestido branco. Alguns exemplares de seus trabalhos modernistas estão afixados nos corredores da direção do Arquivo Histórico de Itajaí, na Casa Lins, amargando um quase exílio.

No período entre as décadas de 1970 e 1980 apareceu também a arte modernista de Osny Schauffert e um pouco de Érico da Silva. Não por acaso que Dinyz Domingos, cansado de explicar o valor da estética moderna, trocou a luminosidade dos seus galos coloridos pela paisagem bucólica tingida por nuances do vermelho dos flamboyants. Dinyz tinha o domínio técnico para ser um grande artista modernista, mas o mercado e a crítica empurraram ele para o ambiente bucólico. Quantas vezes ouvi seus arrazoados prolongados, durante aulas que tinha em seu ateliê, sobre o descaso que todos davam a trabalhos de traços mais econômicos e feições modernistas. Queriam o real do real, o figurativismo na sua essência – no rosto, na paisagem, nas imagens urbanas, nos objetos do cotidiano … – por isso os seus galos foram o máximo que se permitiu em termos de economia de traços. As pinturas luminosas dos galos eram a porta aberta para o modernismo, mas ele nunca adentrou por completo neste recinto.

Dide Brandão e Dinyz não conseguiram romper por completo a muralha conservadora, porque, está dito, nesses casos é necessário contar com a força inexorável do tempo. Com eles a terra tremeu, mas a onda devastadora do tsunami demorou muito tempo para chegar e estabelecer uma nova lógica nas artes itajaienses. Não é por acaso que eu mesmo fui integrar o movimento Cogumelo Atômico – que ocupou as praças de Brusque – e o Projeto Flor Morena – que ocupou as praças de diversas cidades de Santa Catarina, ainda na década de 1970, em plena ditadura da Arena. Ali, na vizinha cidade de Brusque encontrei um grupo disposto a romper barreiras, falar de arte surreal, popular, vanguardista e engajada.

Da década de 1980 eu pinço os nomes da paulista Marilina Bernal e do multifacetado Silvestre João de Souza Júnior como referências dessa luta pelo moderno nas artes em Itajaí.  Marilina e Silvestre mostraram o caminho da pesquisa estética, do uso experimental de novos materiais. Quantas vezes visitei o meu vizinho Silvestre e fiquei horas escutando suas preleções sobre pesquisa de materiais. Destaco três linhas de pesquisa que lhe eram muito caras. A primeira dizia respeito a alquimia da queima de substâncias em busca da cor perfeita. Ele mesmo construiu um forno no terreno de sua casa na Rua Treze de Maio e, ali, em plena liberdade, experimentou queimas sucessivas em busca do tom e consistência ideal de suas cerâmicas. Era, não há dúvida, um alquimista em plena busca pelo que idealizou como forma e cor ideais na arte cerâmica.

A segunda linha de pesquisa de Silvestre estava na busca do jogo de sombra e luz obtidos na madeira através do entalhe. Ele havia feito estudos com o artista Zendron e por muito tempo utilizou as oficinas da Casa da Cultura como laboratório para aprender a harmonizar luz e sombra retirando pequenas lascas de madeira de uma superfície plana. O painel que está afixado na parede interna do corredor da Casa da Cultura Dide Brandão é, expressão desse esforço de Silvestre.

O terceiro ponto que merece destaque na criatividade artística de Silvestre é sua incessante disposição em experimentar novos materiais para compor suas obras. Quando fui diretor da Casa da Cultura de Itajaí [a casa ainda não tinha o nome de Dide Brandão], em 1983, eu e Silvestre íamos uma vez por semana, no meu fusca, participar de um curso em Joinville sobre a produção de papel-arte. Nossas conversas sobre experimentação de materiais se espalhavam pela BR-101 como os cantos dos bem-te-vis se espalhavam pelo campo. Depois de um tempo eu desejava mais ir a Joinville por conta do aprendizado que tinha com Silvestre durante a viagem do que propriamente pelo curso de produção de papel-arte. Cerâmica, papel, entalhe, desenho em bico-de-pena, montagens, instalações, instrumentos musicais, mosaicos … sua criatividade não tinha limite.

Eu avalio que foi com Silvestre e sua liderança no setor artístico de Itajaí – obtida já na vizinhança do século XXI – que o tsunami bateu na praia. A tendência de 1922 formada no epicentro paulista chegou à Itajaí e deu o golpe final no conservadorismo. A partir daí a hegemonia é da estética moderna. Os artistas com tendências clássicas e românticas sobrevivem até os dias atuais, mas perderam por completo o mando de campo. Saíram do centro do processo criativo e, até mesmo, perderam o controle da produção artística voltada para o mercado de artes. Um mercado que atualmente tem Walmir Binhoti, Augusto Raio, Wenceslau, Agê Pinheiro, Ademar Will, Vê Domingos, Fernando Pauler, Victor Lark, Silvana Rocha, Edmundo Campos, Wagner Kuhnem … como balizadores.

Não por acaso, agora, passados mais de cinco décadas da minha excursão pelas praças de Santa Catarina apresentando – junto com Jorge Grimm, JB Guedes, Aluísio Buss – obras modernistas [principalmente com tendência surrealista], volto meu esforço criativo para as artes plásticas. Montei um ateliê – contendo espaço para desenho a bico-de-pena, aquarela e, principalmente, uma oficina para a produção de xilogravura. Também abri espaço para uma galeria do artista itajaiense, contendo obras de Meyer Filho, Vê e Dinyz Domingos, Augusto Raio, Agê Pinheiro, Lindinalva Deólla, César Floriano, Wenceslau, Victor Lark, Walmir Binhotti, Lúcia Mendes… Também, não por acaso, uma parede foi reservada exclusivamente para afixar esboços originais de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Portinari. Esta pequena galeria fica de frente para a galeria dos artistas itajaienses e foi intitulada de ‘Aos mestres com carinho’. Nada mais precisa ser dito… e segue a tendência.

NOVOS DOCUMENTOS E A LITERATURA HISTÓRICA SOBRE ITAJAÍ

É muito comum que os leitores de livros que versam sobre a história de uma cidade considerem o relato sobre a origem de um determinado lugar como algo ‘imexível’, fixo, pronto e determinado. Mas, para contrariar esses leitores e pesquisadores comodistas, vez e outra, aparecem novos documentos que obrigam aqueles que promovem a narrativa histórica a repensar muitos dos dados até então considerados inquestionáveis, assim como a refazer a própria narrativa histórica para preencher grandes lacunas até então existentes por falta de uma prova material fidedigna.

Na narrativa histórica de Itajaí não faltam exemplos de achados que mudaram a trama histórica local. Por exatamente um século era normal afirmar que ‘Itajaí não tem história conhecida’. Por volta de 1920 Marcos Konder descobriu documentos no Rio de Janeiro e Florianópolis que possibilitavam a narrativa de que Antônio de Meneses Vasconcelos de Drummond recebeu a incumbência de fundar uma colônia na região da foz do Rio Itajaí. Com esses documentos em mãos, Marcos Konder tratou de construir uma narrativa toda própria sobre a fundação de Itajaí, sua ‘Pequena pátria’.

Décadas depois dessa primeira narrativa já ter se consolidado a ponto de se tornar hegemônica e oficial, o historiador José Ferreira da Silva conseguiu documentos que provavam que as terras utilizadas por Drummond para fundar a primeira colônia na região estavam localizadas, a bem da verdade, às margens do Rio Itajaí-Mirim, no Tabuleiro, a doze quilômetros de distância da foz do Rio Itajaí. Foi o suficiente para se ter um embate intenso sobre a fundação de Itajaí que envolveu dezenas de intelectuais e ganhou muito espaço na imprensa regional por décadas. Os documentos em mãos de Marcos Konder indicavam a fundação de Itajaí por Drummond. Os documentos em mãos de José Ferreira da Silva indicavam a fundação de Itajaí em outro ponto tendo como liderança Agostinho Alves Ramos.

Sobre o processo fundacional de Itajaí eu considero que devemos continuar procurando documentos, principalmente no Arquivo Nacional, que possam esclarecer melhor as realizações de Drummond no Tabuleiro às margens do Itajaí-Mirim, bem como, a possível utilização do ‘Caminho do meio’ [hoje Estrada Geral do Rio do Meio] como um corredor logístico ligando este empreendimento à Colônia Nova Ericeira [atual Município de Porto Belo]. Se um dia forem encontrados documentos sobre a utilização mais detalhada deste caminho colonial e a ligação direta entre as colônias Nova Ericeira – São Tomaz de Vila Nova, novas narrativas históricas terão de ser construídas, tirando da foz do Rio Itajaí o protagonismo da colonização e, por consequência, da fundação de Itajaí.

Novos documentos históricos são descobertos todos os dias e, nada desabona, a ideia de gradativamente irmos preenchendo lacunas que encontramos facilmente na narrativa histórica da gênese da comunidade itajaiense. O ponto mais lacunar dessa narrativa encontramos, justamente, no tocante à fundação da Colônia São Tomaz de Vila Nova, por Drummond, às margens do Rio Itajaí-Mirim. Por outro lado, tudo indica que novos documentos chegarão às nossas mãos brevemente, devido ao processo rápido que está ocorrendo a digitalização dos acervos públicos em Florianópolis e Rio de Janeiro.

Nessa última semana de abril [ano de 2022] presenciei um evento que bem serve de exemplo para ilustrar essa postura esperançosa na descoberta de novos documentos que possam elucidar determinadas passagens históricas ainda lacunares. O colecionador Carlos Guérios comprou em leilão na cidade de São Paulo documentos originais do processo que o Estado de Santa Catarina manteve contra o diretor da Fábrica de Papel Itajahy, Victor Kleine, por suposta simpatia à Alemanha em plena Segunda Guerra Mundial. Estes documentos estavam integrando uma coleção de selos de um filatelista de São Paulo e foram doados à AAMAPI – Associação dos Amigos do Museu e Arquivo Público de Itajaí. Ao receber os documentos, seu presidente, historiador Edison d’Ávila, destacou que o Arquivo não tinha até agora um documento oficial sobre as prisões de descendentes germânicos que ocorreram durante a Grande Guerra. O que se tinha eram, tão-somente, relatos escritos e orais.

O COLECIONISMO EM ITAJAI E A CRIAÇÃO DA ACRI – ASSOCIAÇÃO DOS COLECIONADORES DA REGIÃO DE ITAJAÍ

O colecionismo é uma atividade presente na sociedade itajaiense desde os seus primórdios e, nos últimos tempos, vem se fortalecendo como atividade que apresenta um misto de cultura, lazer e investimento. Entre os colecionadores antigos de Itajaí encontramos o nome de Joca Brandão [peças indígenas, religiosas e jornais], Joaquim Douwet Diniz [moeda e selo], Camilo Mussi [moeda, cédula, selo], Félix Eugênio Reichert [moeda, cédula, selo], Eduardo Schmitt [selo, cartão postal], Juventino Linhares e Arnaldo Heusi [jornal], João Amaral Pereira [brinquedo e diversos objetos do cotidiano]. Nos dias atuais podemos destacar os colecionadores: Marcelo Sagaz [camisa do Clube Náutico Marcílio Dias], Jules Soto [moeda, quadro], Carlos Guérios [moeda, cartão postal inglês], Manoel Castro Júnior [moeda brasileira], Fernando Humberto Delatorre [imagem e som], Dollor Silva [livro de Itajaí], Magru Floriano [livro de Itajaí, quadro de Itajaí], Eliezer Patissi [música], Edson d’Ávila [imagem sacra, quadro], Ari Garcia Miranda [documentos de Lauro Müller, cartão postal].

A atividade do colecionismo de iniciativa particular é um grande aliado das instituições públicas que tem como escopo a guarda da memória de nossas comunidades. Muitas das coleções particulares serviram como acervo inicial de algumas das mais importantes instituições de preservação como são os casos dos arquivos históricos e museus. Os Arquivos Públicos de Camboriú e Balneário Camboriú contaram com doações expressivas de Isaque de Borba Corrêa e Jurandir Knabben. O Museu de Azambuja contou com o acervo do itajaiense Joca Brandão. O Museu de Itajaí contou com os acervos de João Amaral Pereira e Marcos José Konder. O Arquivo de Itajaí contou com os acervos de colecionadores de jornais como Juventino Linhares, Arnaldo Heusi, Edson d’Ávila, Félix Fóes, Magru Floriano e muitos outros doadores anônimos. O Museu Oceanográfico da Univali contou com o acervo de Jules Soto.

O setor conta com algumas coleções temáticas que resistem ao tempo, como é o caso das coleções de moeda, selo, documentos, cartão postal. Algumas coleções desaceleram junto com o desuso de determinada tecnologia, como é o caso do cartão de telefone. Outras, sumiram sem sequer dizer porque, como são os casos das coleções de  flâmula, chaveiro e adesivo plástico para carro. A verdade é que as coleções sofrem a influência do seu tempo. Um exemplo atual é a coleção de gibi que passaram a englobar também os mangá japoneses. Apesar dos modismos, alguns aficionados mantêm fidelidade ao conceito original de sua coleção. É o caso de Carlos Poleza que mantém uma exemplar coleção contendo milhares de gibis. As novas gerações também estão presentes no mundo do colecionismo. Um exemplo é o jovem Jean Gabriel Ribeiro Lemes, com apenas cinco anos de idade, que coleciona exemplares de rochas e saiu de Porto Belo para participar da fundação da ACRI – Associação dos Colecionadores da Região de Itajaí, no dia 27 de abril de 2022, na Casa da Cultura Dide Brandão, em Itajaí.

Dois itajaienses chegaram ao maior posto do colecionismo catarinense: Camilo Mussi e Félix Eugênio Reichert. Camilo Mussi era reconhecido como grande colecionador de moeda, selo e cédula, mas, também, como um estudioso do colecionismo. Por isso mesmo, tem seu reconhecimento entre os colecionadores catarinenses até o dia hoje. Ele é o patrono da filatelia e numismática catarinense desde o ano de 1970, título reconhecido pela FEFINUSC – Federação das Entidades Filatélicas e Numismática de Santa Catarina, com sede em Florianópolis. Entidade que Camilo presidiu no biênio de 1975-1976.

Outro itajaiense, Félix Eugênio Reichert, foi “idealizador e fundador da AFINUBALCA – Associação de Filatelia e Numismática de Balneário Camboriú [1971], membro da American Numismatic Association (EUA), presidente da FEFINUSC – Federação Filatélica e Numismática de Santa Catarina [2008-2012] e membro do Conselho Fiscal [1984/ 1992], segundo secretário [1980/1984], dirigente da AFSC – Associação Filatélica e Numismática de Santa Catarina [2010-2011], membro e dirigente da Associação Filatélica e Numismática do Vale do Itajaí [2000].”  [Fonte: itajaipedia.com.br].

 

ACRI – ASSOCIAÇÃO DOS COLECIONADORES DA REGIÃO DE ITAJAÍ

 

O dia 27 de abril de 2022 vai entrar para a história do colecionismo de Itajaí e Santa Catarina como a data da fundação da ACRI – Associação dos Colecionadores da Região de Itajaí. A assembleia de fundação ocorreu às 19 horas, tendo como local o auditório Antônio Augusto Nóbrega Fontes da Casa da Cultura Dide Brandão, em Itajaí. Os colecionadores presentes, sócio-fundadores da entidade, elegeram a primeira diretoria que ficou composta por: Carlos Guérios – presidente; Jules Soto – vice-presidente; Eliezer Patissi – tesoureiro; Magru Floriano – secretário.

Os 26 colecionadores presentes à assembleia de criação são [por ordem de inscrição no livro de presença da entidade]: Magru Floriano, Eliezer Patissi, Richard Lopes Corrêa, João Luiz da Silva, José Nilo de Souza, Ricardo Patissi, Luiz Paulo Lechinski, Jean Paulo Lemer de Oliveira, Frederico Carlos Araujo da Silva, Gustavo Melim Gomes, Sydney Schead dos Santos, Edson d’Ávila, Leandro Vinicius Hahn, Carlos Alberto Costa Guérios, Valmir Vitorino Junior, Andréa Bernardo Vitorino, Eliseu Azevedo Salermo, Marcelo Sagaz Baião, Thomas Olquist, João Ricardo C. Silva, Gerson A. Mota, Jules Soto, Luis Ricardo da Silva, Antonio Carlos Pozatto, Manoel Castro Júnior, Eliana Maria Ferreira de Oliveira.

A ACRI tem como objetivos principais: orientar os associados sobre a organização de coleções; comercialização de peças – compra, venda, troca; promoção de eventos; participação em encontros e feiras em nível estadual e interestadual; ação educativa nas escolas; divulgação da atividade do colecionismo nas mídias; troca de experiências e informações; formação de banco de dados sobre fornecedores de peças e serviços.  A entidade foi fundada oficialmente no dia 27 de abril, mas há mais de seis meses um pequeno grupo vem se reunindo semanalmente para dar vida à entidade. Em um primeiro momento foi criada uma diretoria provisória, tendo como único objetivo a promoção da reunião de fundação e eleição da primeira diretoria oficial. A diretoria provisória era assim constituída: Presidente – Carlos Guérios; tesoureiro – Eliezer Patissi; secretário – Magru Floriano.

Estima-se que na Região da Grande Itajaí o colecionismo pode abranger mais de dez mil pessoas que selecionam e guardam objetos de brindes (caneta, chaveiro, flâmula, adesivo, caneca), bem como selo, moeda, cédula, cartão postal, disco de vinil e CD, livro, fotografia, brinquedo, máquina, obra de arte, miniatura, bicicleta, carro, documento, chapéu, cartão telefônico, revista e gibi, camisa de jogador, bola e troféu, rocha, prato decorativo, pin e botton … Praticamente tudo é colecionável, de latinha de cerveja a litro de cachaça, de jornal a gibi, de miniatura a carro de verdade.

 

A MINHA EXPERIÊNCIA DE COLECIONADOR

 

Eu comecei a colecionar muito cedo, antes dos dez anos de idade. A minha primeira coleção foi de amostras de rocha. Até hoje guardo na memória aquela coleção que foi abandonada quando meus pais transferiram residência do Bairro São João para o Centro da cidade de Itajaí. Não havia lugar para ela na nova casa, nem mesmo na garagem. Passados os anos, comecei a guardar exemplares de jornais, principalmente números zero e um. Um pouco mais à frente iniciei a formação da minha biblioteca de autores itajaienses.

Ao meu relacionar mais frequentemente com Félix Eugênio Reichert e seu parceiro de colecionismo Carlos Guérios, acabei criando ânimo para iniciar uma coleção de cartões postais de Itajaí. Por último, iniciei uma coleção de obras de artistas de Itajaí. A minha coleção de jornais de Itajaí sempre teve como objetivo suprir a hemeroteca do Arquivo Histórico de Itajaí. Sempre que tenho oportunidade faço doação à entidade. A primeira delas ocorreu quando herdei, na condição de repórter, quando da falência da empresa no final da década de 1980, de uma coleção completa do jornal A Nação. A segunda coleção doada era integrada por exemplares, do número zero ao 350, da Tribuna Itajaiense, editado pelo jornalista Paulo Camisotti. Tenho ainda em minha hemeroteca cerca de dois mil exemplares de jornais diversos, inclusive jornal feito à mão na década de 1940 e alguns ‘zines’ dos primeiros alunos do Curso de Jornalismo da Univali. Essa coleção está destinada a ser doada, na sua íntegra, à Fundação Genésio Miranda Lins.

Mais recentemente, 2019, doei ao Instituto Soto, responsável pela montagem do museu que está sendo montado utilizando o prédio da antiga sede do serviço de fiscalização do Porto, no final da avenida Prefeito Paulo Bauer, diversos objetos pertencentes ao marinheiro Odílio Garcia, considerado o herói itajaiense. Doei o rádio que utilizava ainda quando era embarcado em Santos, bem como duas canetas Parker e um isqueiro. Também foram doados fotos e documentos pessoais, além de um quadro assinado pelo artista plástico Walmir Binhotti. Antes disso, havia doado ao Museu Histórico de Itajaí uma tela assinada por Walter Smykalla que retrata a igrejinha da localidade de Matadouro – há muito demolida.

Então, essa disposição que tenho de doar coleções e peças às entidades públicas responsáveis pela guarda de acervos com relevância histórica (que encontro em muitos outros colecionadores) evidencia a parceria positiva que pode existir entre o privado e o público no setor da preservação da memória. Desde Joca Brandão que a paixão do colecionismo de particulares é decisiva para a composição dos primeiros acervos de instituições públicas. Essa parceria deve aumentar significativamente com a criação da ACRI uma vez que sua diretoria pretende fazer ações juntos aos estudantes visando a adesão à prática do colecionismo bem como a doação de peças com valor histórico aos órgãos públicos correspondentes.  [magrufloriano2008@gmail.com].

 

AS SEMENTES DA MINHA INFÂNCIA

No início do mês de abril [2021] afixei na parede da minha casa de praia em Mariscal [Bombinhas – SC] um quadro-montagem contendo centenas de baguinhas [sementes] que coletei durante décadas em passeios junto à natureza. Eram coletadas sempre em um clima de reminiscência do tempo de criança. Naquele tempo, décadas de 1950 e 1960, ainda não tinha sido incorporada no nosso cotidiano a indústria do plástico, e, as famílias pobres e de classe média não tinham poder aquisitivo para comprar os brinquedos mais sofisticados ofertados nas lojas. Restava, portanto, a criatividade infantil. Sendo assim, todos os elementos encontrados no entorno de uma criança acabam sendo utilizados na elaboração de brinquedos, de lata velha a osso de boi, de sementes a galhos de árvores; de pedaços de madeira a cepilho e pó de serra. Tudo era utilizado para compor o mundo lúdico em que vivíamos.

A baga de mamona era a nossa preferida para promovermos guerrinhas individuais ou coletivas. Muitas vezes, dependendo da intensidade da rivalidade existente entre os grupos, as sementes eram arremessadas através da tradicional funda [estilingue]. Outro artefato bélico era a pequena semente do birú. Ela era introduzida na boca e soprada em um canudinho feito de galho de mamoeiro, servindo desta forma como uma zarabatana improvisada. Uma das sementes mais requisitadas no meu grupo de infância era a conhecida coronha ou olho-de-boi, por nós denominada de ‘esquenta’ porque ao ser friccionada sobre uma pedra acabava adquirindo temperatura expressiva a ponto de ser detectada na pele.

Sobre a coronha tenho um aprendizado doloroso. Acontece que sempre brincava com essas bagas em Cabeçudas, onde minha família tinha casa de praia. Quando levava elas para o Bairro São João, onde residi até os quinze anos de idade, elas sempre faziam muito sucesso. Acontece que, por imaginação infantil, sempre pensei que a coronha era a semente desgastada pela ação do mar e do sol dos tradicionais sombreiros de Cabeçudas. Porém, durante uma expedição cultural que fiz em companhia do memorialista Isaque de Borba Corrêa à Praia do Forte, em São Francisco do Sul, por volta do ano 2000, ele me apresentou a coronha como sendo a baga de um cipó. Ficamos discutindo durante toda a caminhada: eu argumentando tratar-se da semente da árvore sombreiro; ele, argumentando tratar-se da semente de um cipó.

No meio da subida de um morro por mata nativa ele avistou à beira do caminho um desses cipós e mandou eu pegar uma vagem para constatar que realmente ali dentro iria ser encontrada a tal da Coronha. Eu relutei, mas peguei uma vagem com toda a força para retirá-la do cipó. Nesse momento senti dores por toda a minha mão. Assim, aprendi, na dor, porque o cipó também era conhecido como pó-de-mico. A vagem era revestida por pequeníssimos espinhos que deixaram minha mão dolorida por dias. Sofri duplamente com essa experiência: primeiro que realmente a coronha era a semente de uma vagem de cipó: segundo, a vagem é revestida por espinhos finíssimos que maltratam intensamente a mão de quem as pega sem a devida proteção. Até hoje, quando o Isaque me vê com uma baguinha coronha, e eu estou sempre com uma no bolso, fica com aqueles ares de que me ensinou uma lição pela dor para eu deixar de ser teimoso.

Bem, mas no quadro que afixei na parede tem ainda outras sementes. Uma que considero especial é a semente Lágrima de Nossa Senhora que eu, não sei também porque, sempre chamei de Semente de Santa Terezinha. Com ela fazíamos todo tipo de artesanato, como colares, pulseiras, cintos e até rosários. Uma outra semente que sempre colho quando vejo é a semente de Birú. Pequena, preta, encho a mão delas e saio pela rua chutando-as como se estivesse na Rua Max, no Bairro São João de antanho. Aqui perto de casa, nos muros da casa do artista Silvestre João de Souza Júnior [casa abandonada após seu falecimento] tem dois pés de Birú que me fornecem durante bom tempo do ano essas baguinhas. Quando passo pela Travessa Moritz sempre pegos as baguinhas e saio chutando-as, uma por uma, até a João Bauer. Parece até coisa de maluco, mas é, na verdade, minhas reminiscências de infância não deixando a criança que tenho em mim morrer.

Também acho muito lindas as sementes de Garapuvu. Mas essas não fizeram parte da minha infância diretamente. Comecei a percebê-las por sua beleza estética caminhando na estrada alta de Cabeçudas, aquela que vai para o Morro Cortado, quando já era adolescente. Ali tem diversos garapuvus gigantes que espalham muitas dessas sementes pelo leito da estrada. Quem passa a pé pelo local não tem como não percebê-las. Lindissimas.

Garapuvu, birú, mamona, lágrima de Nossa Senhora, olho de boi …. qual semente fez parte das suas brincadeiras de criança? [magrufloriano2008@gmail.com].

A PANDEMIA DO BARULHO

Nasci em Itajaí no ano de 1956 e nunca senti essa sensação de ocupação total e desordenada dos espaços públicos que sinto nos dias de hoje. Para todos os lados que olho tem uma multidão. Não há mais um cantinho sequer onde posso contemplar a natureza, andar calmamente ou sentar em um banco sem que escute barulhos de canos de escapes desregulados, buzinas de carros e caminhões em engarrafamentos, sons alucinantes de pequenas caixas de som. Praças, ruas, praias, mirantes, rodovias, pesque-pagues … tudo lotado. Não há dúvida de que o silêncio é a grande vítima da pandemia do Coronavírus, transformando a era pós pandemia em um tempo de culto ao barulho.

Saídas do confinamento social imposto pela pandemia as pessoas demonstram uma intensa necessidade de ver gente, fazer barulho, gritar por liberdade e refazer sociabilidades. Parece que elas sentem como se estivessem acordando de um estado de coma prolongado, e, agora, desejam recuperar o tempo perdido. Demonstram que estão com pressa, agitadas, irrequietas. Nesse momento, quanto mais barulho melhor, quanto mais gente melhor, quanto mais agitação melhor. As pessoas querem aproveitar intensamente o momento como se não houvesse amanhã. Elas perderam a tranquilidade e o senso de aproveitar o tempo ao seu tempo, um dia após o outro, com parcimônia. Querem tudo agora, nesse exato momento. Um ambiente psicológico de ‘presentíssimo’², onde as referências existenciais de passado e futuro são completamente anuladas. Só existe o presente e, ele deve ser vivido intensamente.

Quando passo por alguns pontos do meu ‘território de infância’¹ é inevitável que faça algumas comparações – confrontando imagens do presente e do passado – demonstrando total perplexidade com o que está ocorrendo atualmente. Ali, na rua Indaial, eu andava sobre os trilhos do trem para transitar entre o Bairro São João e o Parque Dom Bosco. Era um caminho de brincadeiras e raramente via um carro ou carroça passando na rua que corria paralela aos trilhos. Hoje, está quase impossível transitar pela rua Indaial, porque tem engarrafamento a toda hora em qualquer dia da semana.

Por toda a cidade existiam grandes áreas de terras não cercadas que serviam para a improvisação de um número interminável de campinhos de futebol. Era difícil encontrar uma rua que não tivesse pelo menos um campinho de futebol com piso de cepilho e pó-de-serra. Eram as nossas áreas de lazer, improvisadas, sem a necessidade da Prefeitura gastar dinheiro com infraestrutura e equipamentos. Hoje, é carro para todos os lados – transitando e parado. Encontrar uma vaga de estacionamento nas ruas de Itajaí é uma missão que requer muita paciência mesmo nas áreas urbanas periféricas. Todo mundo quer carro e moto, deixando o transporte coletivo à mingua, sobrevivendo às custas do favor público. Sem a rua para exercer suas sociabilidades o povo ruma, em fila, para a área litorânea. Diariamente, uma multidão ocupa o ‘Caminho de Sodegaura’ em direção à Cabeçudas. A Praia Brava, que era uma praia agreste, onde cheguei a acampar e pescar em total solidão, está sendo minada por condomínios de luxo compostos por edifícios gigantescos. Já não existe limite visível entre as cidades de Itajaí e Balneário Camboriú e, tudo indica que em menos de uma década o mesmo deve ocorrer em direção a Brusque, Ilhota e Camboriú.

Meu ‘território de infância’ foi invadido por uma horda de bárbaros que no lugar de usar espadas usam caixas de som e buzinas. [magrufloriano2008@gmail.com].

 

 

1 – Território de infância – expressão utilizada por Lausimar Laus.

2 – Presentíssimo – termo utilizado por Magru Floriano no seu ensaio intitulado ‘O tempo da história – reflexões sobre o tempo, memória e história’, ainda em manuscrito.

ARTE OU VANDALISMO ?

Monumento alusivo aos 500 anos do descobrimento do Brasil – Praça João Bauer – tendo ao fundo o muro do Grupo Escolar Victor Meirelles.

Quem costuma andar com calma pela cidade está habituado a apreciar inúmeras obras de arte elaboradas tendo como base grandes áreas muradas. Terminal Portuário de Itajaí – rua Blumenau; Forum Universitário – avenida vereador Abraão João Francisco; Casa da arte – rua Silva; Grupo Escolar Victor Meirelles – Praça João Bauer … são alguns bons exemplos da arte do grafite exercida com maestria em Itajaí. Contudo, também encontramos muita pichação [pixo], principalmente nas praças públicas e seus monumentos. A diferença entre grafite e pichação já rendeu muita polêmica no meio artístico e, pelo jeito, vai continuar rendendo por muito tempo.

A Praça João Bauer, em pleno centro da cidade de Itajaí, é um bom exemplo desse embate feroz entre grafite e pixo. Enquanto os muros do Grupo Escolar Victor Meirelles estão servindo de base para a arte do grafite – merecendo de todos os transeuntes aprovação e reconhecimento – pisos e bustos dessa mesma praça estão servindo de base para a manifestação dos adeptos da pichação. Contudo, ao contrário do que acontece com a arte no muro, a pichação não tem a aprovação da população e usuários da praça, muito pelo contrário.

A arte de muro tem um apelo estético voltado para a imagem colorida, com um visual muito próximo das artes de galerias e, por isso mesmo, dando um aspecto mais saudável para o ambiente da cidade. Bonitas e coloridas as obras do grafite acabam até mesmo valorizando o imóvel que utilizam como referência. Obviamente que todo mundo prefere o grafite à estética do abandono. Em contrapartida o pixo deteriora e desvaloriza o patrimônio que usa como base. Na Praça João Bauer o próprio busto do político que empresta seu nome àquele espaço público é reiteradamente pichado, o mesmo ocorrendo com o monumento alusivo aos quinhentos anos do descobrimento do Brasil.

O grafite usa mais a imagem, enquanto o pixo utiliza mais a escrita. O gravite é uma arte de rua que valoriza o espaço que ocupa, enquanto o pixo está vinculado ao protesto contra a sociedade de modo geral. É a política da degradação de um bem para ferir valores da sociedade, como propriedade e estética burguesas. O pixo, portanto, será sempre vinculado à arte de protesto, arte marginal ao sistema, seus valores e vultos. Não é por acaso que o busto de João Bauer sempre merece por parte dos pichadores um bigodinho no estilo Hitler, apesar dos pichadores saberem muito pouco ou quase nada sobre a vida e obra desse político itajaiense. É o protesto pelo protesto. O protesto que se basta em si mesmo. “O meio é a mensagem’ como sentenciava o canadense Marshall Macluhan.

Mas será que podemos considerar a pichação de um monumento, este em si um objeto de arte, como uma forma de expressão artística? Até que ponto pichação e arte podem tem fins comuns? Qual a fronteira entre vandalismo e pichação? A arte que destrói e corrompe uma outra obra de arte pode ser considerada arte? Ela é útil, necessária, aceitável, desejável, ética …? Em um mundo padronizado, acinzentado, poluído … agir para deteriorar obras de artes em ambientes abertos públicos, deixando tudo ainda mais feio, é uma ação que tem mérito? Ação que enfeia o que é belo pode ser considerada uma ação artística? O feio também pode pertencer ao campo da arte? Enfim, o pixo é arte ou deve, tão-somente, ser visto como uma ação política?

Essa tendência de desvalorizar o patrimônio [público e privado] que lhe serve de base, obviamente, confere ao pixo uma condição existencial de marginalidade. Destruir, enfear, desvalorizar, desmotivar… são todos verbos negativos que, inevitavelmente, estão sempre vinculados à prática do pixo. Uma negatividade marginal que é desejada por seu autor, sempre um militante, um ator engajado na luta contra a sociedade e seu status quo. Ao pichar um monumento o que se busca é agredir o sistema e sua estética conformista e hegemônica. Sem utilizar imagens e, sequer formular uma frase inteira com sentido e mensagem, o pixo pretende dizer tudo através do ato em si. Sendo assim, sequer precisa se explicar e ter sentido. Por isso que alguns críticos consideram a pichação como a mais pura das expressões artísticas, uma vez que ela não passa por filtros da cultura ocidental como razão, consciência, lógica …. é lava incandescente vinda diretamente de um vulcão em ebulição chamado inconsciente.

Contudo, parece evidente que o movimento apresenta inúmeras contradições. A principal delas está nitidamente representada na disputa por conquistar território através das pichações cada vez mais ousadas e onipresentes. Essa ubiquidade busca, por sua vez, conquista de status entre seus adeptos tribais. Então, ao mesmo tempo que nega todos os valores da sociedade contemporânea, volta-se sobre sua própria essência para desejar uma omni praesentia que lhe confere status na tribo marginal. Não fosse esse desejo de onipresença territorial as marcas deixadas não seriam todas padronizadas e seus feitores fariam marcas diferentes e aleatórias a cada intervenção. Mas, cada membro tribal tem sua marca e esta, por sua vez, merece reconhecimento dos demais e, por isso mesmo, tem status.

Colocar uma marca em lugar de difícil acesso, demonstrando ousadia e destemor, rindo do perigo, confrontando proprietários e autoridades, apresentando à cidade o improvável e o inútil … confere ao seu autor status e reconhecimento. Essa compensação social, mesmo que restrita à pequena tribo urbana dos pichadores, confere aos demolidores da estética urbana burguesa a possibilidade da construção de uma nova ordem estética. Então, querendo eles ou não, ao destruir estão construindo. O que resta, no silêncio de todas as madrugas em que atuam os pichadores, é saber se o que pretendem destruir vai dar lugar a algo melhor para eles e para todos os seres vivos sobre o planeta terra.

Afinal, o ato político da pichação é uma utopia ou distopia?

UMA CASA NA MEMÓRIA

È muito difícil alguém passar por uma casa com telhado no estilo ‘mansarddach’ sem que tenha a curiosidade aguçada. Afinal, a casa ganha uma estética diferenciada, mais pomposa, destacando as janelas do sótão. A invenção desse tipo de telhado é atribuída ao arquiteto francês Fançois Mansart [1598-1666] mas ele foi muito utilizado pelos imigrantes de origens alemã e italiana em todo o Vale do Itajaí. Segundo definição de Angelina Wittmann, o telhado de mansarda é constituído por “… panos de telhados dobrados (no Brasil chamado de água) na parte inferior, de tal maneira que a superfície inferior da cobertura, geralmente um sótão, existe em declive mais íngreme do que a parte superior. Duas inclinações diferentes no pano de telhado. Este tipo de disposição de duas inclinações cria um espaço adicional no sótão.”

Sempre que passo por uma casa com ‘telhado de mansarda’ recebo uma profusão de  informações vindas do passado, através das lembranças de vozes, cheiros, imagens, sensações as mais diversas. Elas são oriundas do meu tempo de criança, quando passava regularmente minhas férias de inverno no sítio de meus tios na localidade de Machados, no antigo bairro de Navegantes, acessando o outro lado do rio através da passagem da balsa na Barra do Rio. Os Duarte tinham uma casa com este tipo de telhado, com várias águas, formando um sótão mais espaçoso e vistoso.

Como o meu tio era dono de venda, o espaço a mais que a ‘mansarda’ dava ao sótão era reservado para depósito de mercadoria a granel. Uma grande caixa de madeira, com compartimentos estanques para depositar milho, arroz, feijão … ficava à frente de nossas camas. Estas, contendo colchões de palha de milho, com travesseiros preenchidos com pena de aves domésticas. São esses cheiros que me invadem a mente quando avisto uma casa de mansarda. Também vem à lembrança a vista da janela do sótão para a rua geral dos Machados, ainda em terra batida. Chego a escutar o barulho dos meus pés subindo os degraus da escada de madeira e as vozes dos meus primos e suas brincadeiras corriqueiras antes de dormir – incluindo a tradicional guerra de travesseiros.

Aqui em Itajaí ainda consigo ver algumas casas com telhados de mansarda, nas áreas urbana e rural. Recentemente foi demolida a casa da família de Pedro Muller, na rua Anita Garibaldi. Mas, resiste ao tempo uma linda casa localizada na rua Pedro José João – rua geral do Matadouro. A família Furtado mantém uma casa com telhado de mansarda ‘cortado’, em plena avenida Joca Brandão. A mais destacada dessas casas era de propriedade da família Pereira e ficava às margens da Estrada para Florianópolis, depois nomeada de Rodovia Osvaldo Reis, quase ao pé do Morro Cortado. Na frente da casa tinha uma grande figueira que acabou dando a denominação de Figueirinha para toda a localidade.

No interior, volta e meia encontramos uma casa dessas perdida na paisagem.

casa da Família Muller – rua Anita Garibaldi.

 

rua Pedro José João – rua geral do Matadouro

 

Casa da Família Pereira – Av. Sete de Setembro – demolida.

Itaipava

casa comercial na rua Uruguai

Comércio da Família Pereira às margens da rodovia Osvaldo Reis – 1971.

Casa da Família Furtado na avenida Joca Brandão.