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AS SEMENTES DA MINHA INFÂNCIA

No início do mês de abril [2021] afixei na parede da minha casa de praia em Mariscal [Bombinhas – SC] um quadro-montagem contendo centenas de baguinhas [sementes] que coletei durante décadas em passeios junto à natureza. Eram coletadas sempre em um clima de reminiscência do tempo de criança. Naquele tempo, décadas de 1950 e 1960, ainda não tinha sido incorporada no nosso cotidiano a indústria do plástico, e, as famílias pobres e de classe média não tinham poder aquisitivo para comprar os brinquedos mais sofisticados ofertados nas lojas. Restava, portanto, a criatividade infantil. Sendo assim, todos os elementos encontrados no entorno de uma criança acabam sendo utilizados na elaboração de brinquedos, de lata velha a osso de boi, de sementes a galhos de árvores; de pedaços de madeira a cepilho e pó de serra. Tudo era utilizado para compor o mundo lúdico em que vivíamos.

A baga de mamona era a nossa preferida para promovermos guerrinhas individuais ou coletivas. Muitas vezes, dependendo da intensidade da rivalidade existente entre os grupos, as sementes eram arremessadas através da tradicional funda [estilingue]. Outro artefato bélico era a pequena semente do birú. Ela era introduzida na boca e soprada em um canudinho feito de galho de mamoeiro, servindo desta forma como uma zarabatana improvisada. Uma das sementes mais requisitadas no meu grupo de infância era a conhecida coronha ou olho-de-boi, por nós denominada de ‘esquenta’ porque ao ser friccionada sobre uma pedra acabava adquirindo temperatura expressiva a ponto de ser detectada na pele.

Sobre a coronha tenho um aprendizado doloroso. Acontece que sempre brincava com essas bagas em Cabeçudas, onde minha família tinha casa de praia. Quando levava elas para o Bairro São João, onde residi até os quinze anos de idade, elas sempre faziam muito sucesso. Acontece que, por imaginação infantil, sempre pensei que a coronha era a semente desgastada pela ação do mar e do sol dos tradicionais sombreiros de Cabeçudas. Porém, durante uma expedição cultural que fiz em companhia do memorialista Isaque de Borba Corrêa à Praia do Forte, em São Francisco do Sul, por volta do ano 2000, ele me apresentou a coronha como sendo a baga de um cipó. Ficamos discutindo durante toda a caminhada: eu argumentando tratar-se da semente da árvore sombreiro; ele, argumentando tratar-se da semente de um cipó.

No meio da subida de um morro por mata nativa ele avistou à beira do caminho um desses cipós e mandou eu pegar uma vagem para constatar que realmente ali dentro iria ser encontrada a tal da Coronha. Eu relutei, mas peguei uma vagem com toda a força para retirá-la do cipó. Nesse momento senti dores por toda a minha mão. Assim, aprendi, na dor, porque o cipó também era conhecido como pó-de-mico. A vagem era revestida por pequeníssimos espinhos que deixaram minha mão dolorida por dias. Sofri duplamente com essa experiência: primeiro que realmente a coronha era a semente de uma vagem de cipó: segundo, a vagem é revestida por espinhos finíssimos que maltratam intensamente a mão de quem as pega sem a devida proteção. Até hoje, quando o Isaque me vê com uma baguinha coronha, e eu estou sempre com uma no bolso, fica com aqueles ares de que me ensinou uma lição pela dor para eu deixar de ser teimoso.

Bem, mas no quadro que afixei na parede tem ainda outras sementes. Uma que considero especial é a semente Lágrima de Nossa Senhora que eu, não sei também porque, sempre chamei de Semente de Santa Terezinha. Com ela fazíamos todo tipo de artesanato, como colares, pulseiras, cintos e até rosários. Uma outra semente que sempre colho quando vejo é a semente de Birú. Pequena, preta, encho a mão delas e saio pela rua chutando-as como se estivesse na Rua Max, no Bairro São João de antanho. Aqui perto de casa, nos muros da casa do artista Silvestre João de Souza Júnior [casa abandonada após seu falecimento] tem dois pés de Birú que me fornecem durante bom tempo do ano essas baguinhas. Quando passo pela Travessa Moritz sempre pegos as baguinhas e saio chutando-as, uma por uma, até a João Bauer. Parece até coisa de maluco, mas é, na verdade, minhas reminiscências de infância não deixando a criança que tenho em mim morrer.

Também acho muito lindas as sementes de Garapuvu. Mas essas não fizeram parte da minha infância diretamente. Comecei a percebê-las por sua beleza estética caminhando na estrada alta de Cabeçudas, aquela que vai para o Morro Cortado, quando já era adolescente. Ali tem diversos garapuvus gigantes que espalham muitas dessas sementes pelo leito da estrada. Quem passa a pé pelo local não tem como não percebê-las. Lindissimas.

Garapuvu, birú, mamona, lágrima de Nossa Senhora, olho de boi …. qual semente fez parte das suas brincadeiras de criança? [magrufloriano2008@gmail.com].