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A PANDEMIA DO BARULHO

Nasci em Itajaí no ano de 1956 e nunca senti essa sensação de ocupação total e desordenada dos espaços públicos que sinto nos dias de hoje. Para todos os lados que olho tem uma multidão. Não há mais um cantinho sequer onde posso contemplar a natureza, andar calmamente ou sentar em um banco sem que escute barulhos de canos de escapes desregulados, buzinas de carros e caminhões em engarrafamentos, sons alucinantes de pequenas caixas de som. Praças, ruas, praias, mirantes, rodovias, pesque-pagues … tudo lotado. Não há dúvida de que o silêncio é a grande vítima da pandemia do Coronavírus, transformando a era pós pandemia em um tempo de culto ao barulho.

Saídas do confinamento social imposto pela pandemia as pessoas demonstram uma intensa necessidade de ver gente, fazer barulho, gritar por liberdade e refazer sociabilidades. Parece que elas sentem como se estivessem acordando de um estado de coma prolongado, e, agora, desejam recuperar o tempo perdido. Demonstram que estão com pressa, agitadas, irrequietas. Nesse momento, quanto mais barulho melhor, quanto mais gente melhor, quanto mais agitação melhor. As pessoas querem aproveitar intensamente o momento como se não houvesse amanhã. Elas perderam a tranquilidade e o senso de aproveitar o tempo ao seu tempo, um dia após o outro, com parcimônia. Querem tudo agora, nesse exato momento. Um ambiente psicológico de ‘presentíssimo’², onde as referências existenciais de passado e futuro são completamente anuladas. Só existe o presente e, ele deve ser vivido intensamente.

Quando passo por alguns pontos do meu ‘território de infância’¹ é inevitável que faça algumas comparações – confrontando imagens do presente e do passado – demonstrando total perplexidade com o que está ocorrendo atualmente. Ali, na rua Indaial, eu andava sobre os trilhos do trem para transitar entre o Bairro São João e o Parque Dom Bosco. Era um caminho de brincadeiras e raramente via um carro ou carroça passando na rua que corria paralela aos trilhos. Hoje, está quase impossível transitar pela rua Indaial, porque tem engarrafamento a toda hora em qualquer dia da semana.

Por toda a cidade existiam grandes áreas de terras não cercadas que serviam para a improvisação de um número interminável de campinhos de futebol. Era difícil encontrar uma rua que não tivesse pelo menos um campinho de futebol com piso de cepilho e pó-de-serra. Eram as nossas áreas de lazer, improvisadas, sem a necessidade da Prefeitura gastar dinheiro com infraestrutura e equipamentos. Hoje, é carro para todos os lados – transitando e parado. Encontrar uma vaga de estacionamento nas ruas de Itajaí é uma missão que requer muita paciência mesmo nas áreas urbanas periféricas. Todo mundo quer carro e moto, deixando o transporte coletivo à mingua, sobrevivendo às custas do favor público. Sem a rua para exercer suas sociabilidades o povo ruma, em fila, para a área litorânea. Diariamente, uma multidão ocupa o ‘Caminho de Sodegaura’ em direção à Cabeçudas. A Praia Brava, que era uma praia agreste, onde cheguei a acampar e pescar em total solidão, está sendo minada por condomínios de luxo compostos por edifícios gigantescos. Já não existe limite visível entre as cidades de Itajaí e Balneário Camboriú e, tudo indica que em menos de uma década o mesmo deve ocorrer em direção a Brusque, Ilhota e Camboriú.

Meu ‘território de infância’ foi invadido por uma horda de bárbaros que no lugar de usar espadas usam caixas de som e buzinas. [magrufloriano2008@gmail.com].

 

 

1 – Território de infância – expressão utilizada por Lausimar Laus.

2 – Presentíssimo – termo utilizado por Magru Floriano no seu ensaio intitulado ‘O tempo da história – reflexões sobre o tempo, memória e história’, ainda em manuscrito.

A CRIATIVIDADE ARTÍSTICA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Durante toda a sua vida artística William Shakespeare teve de conviver em ambientes hostis, impregnados pela peste. Muitas foram as vezes que os teatros londrinos foram fechados por longo período, até que as autoridades sanitárias entendessem que a situação estava sob controle. Mas, enquanto estava parado, sem poder encenar suas peças teatrais, o grande dramaturgo aproveitava o momento de isolamento para escrever obras majestosas como Rei Lear e Macbeth, sem falar de seus poemas – pouco apreciados aqui no Brasil, mas reconhecidos como verdadeiras obras-primas da literatura mundial.

A adversidade nunca parou o gênio criativo. Assim como Shakespeare gestou em plena epidemia o seu Rei Lear, muitos outros autores criaram obras-primas em ambientes adversos ou depois de passar por adversidades extremas, como doenças graves, prisões, exílios, guerras e pestes. Memórias do cárcere de Graciliano Ramos é um exemplo de literatura de alto nível retirada da experiência da prisão política; enquanto Albert Camus e Frida Kahlo gestaram suas obras no isolamento imposto por questões de saúde. São tantos os artistas que criaram no exílio, prisão, guerra, pandemia, confinamento ou isolamento que a lista seria quase que interminável.

Diante dessa constatação é que considero válida a pergunta formulada por Flávio de Souza no ensaio ‘O que faz um dramaturgo quando os teatros estão fechados?publicado no livro ‘O que você precisa saber sobre Shakespeare antes que o mundo acabe’: Será que algo de bom, ótimo, excelente pode estar sendo causado em meio a tanto pavor, desespero, recessão econômica, desemprego e paralisação de vida cultural – além de mortes, traumas, perdas e danos?

Baseado na experiência de vida de Jean-Jacques Rousseau, Henry David Thoreau, Graciliano Ramos, Aleijadinho, Frida Kahlo, Albert Camus, William Shakespeare, Victor Hugo, Giovanni Boccacio, Pablo Picasso, Erich Maria Remarque, Miguel de Cervantes … o que podemos esperar em termos de produção criativa no pós-pandemia do Coronavírus? Em março de 2022 estamos completando um ciclo de dois anos de isolamento social motivado pela pandemia e, muito pouco se tem visto anunciar como algo novo e extraordinariamente digno de ser chamado de obra-prima em qualquer setor das artes. Será que tudo ainda está sendo gestado no silêncio anônimo do isolamento domiciliar?  Será que tudo estará sendo revelado aos poucos, com o passar dos tempos, no declínio da peste?

A sociedade brasileira, nesses dois anos, conviveu com a morte de 655.000 cidadãos e com a infecção pelo vírus de quase 30.000.000 – isso mesmo, trinta milhões de brasileiros foram infectados pelo coronavírus em dois anos de pandemia. Será que esse ambiente hostil ao extremo, ceifando quase um milhão de vidas, não mexeu o suficiente com a angústia do gênio, como a trincheira da guerra mexeu com Richard Flanagan, Euclides da Cunha e Erich Maria Remarque? Será que nosso tempo gestou a peste mas não gestou o gênio? [magrufloriano2008@gmail.com].