No colégio era comum estudarmos os grandes escritores nacionais relacionando seus nomes e obras em uma listinha quase impossível de ser decorada. Aliás, lista era o que não faltava em tempos de provas. Geralmente eram listas contendo os ‘dez mais’: rios, montanhas, lagos, países … Quem conseguia decorar estas listinhas era considerado aluno nota dez. Mas, na escola que nos ensinava quais eram as dez maiores montanhas do mundo seus professores sequer subiam o Morro da Cruz. Falavam dos grandes rios e não molhavam seus pés no Rio Itajaí. Os alunos ‘nota dez’ decoravam listas dos escritores e não liam seus livros. Eram listas, apenas listas, formando uma cultura vazia. Foi nesse contexto que tive contato com o nome da poetisa Cecília Meireles e sua grande obra: Romanceiro da Inconfidência. Cecília era um nome na lista, junto com Castro Alves, Olavo Bilac, Machado de Assis, José de Alencar, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos … Dependendo do professor, era a única mulher incluída entre tantos homens. Vez e outra apareciam os nomes de Clarice Lispector, Ligia Fagundes Teles e Raquel de Queiroz … mas, o mundo era dos homens.
Apesar de nunca ter sido um aluno ‘nota dez’ sempre guardei na memória a listinha dos maiores escritores brasileiros e, ao longo da vida, tentei lê-los. Alguns dos meus ‘eleitos’ passei a recomendar aos meus alunos do Curso de Jornalismo da Univali (Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Lima Barreto …) argumentando que o bom jornalista era antes de tudo um bom leitor. A grande maioria fazia ouvidos moucos, mas sempre tinha aquela minoria valiosa que lia e, depois, vinha compartilhar impressões de leitura. Para estes, não se tratava de mais uma listinha ou uma extensa referência bibliográfica da disciplina ‘Realidade Brasileira’, mas sugestões de leitura de quem leu mais que uma simples listinha para tirar nota em uma prova protocolar.
Quando iniciei um curso – fora do horário regular da disciplina de Sociologia da Comunicação – que buscava ensinar aos alunos da Univali a ler cinema, utilizando o método ‘Análise de Conjuntura’, deparei com um curta-metragem intitulado ‘Ilha das Flores’. Ali, aparecia de forma destacada os versos de Cecília Meireles:
‘Liberdade – essa palavra
Que o sonho humano alimenta:
Que não há ninguém que explique,
E ninguém que não entenda!’
Esses versos passaram e me servir de referência quando o tema em discussão era LIBERDADE. Cecília, a que sempre esteve presente nas listinhas, mas pouco lida Brasil afora, cada vez mais se tornava citação obrigatória em minhas palestras e cursos. Além dos versos acima transcritos, usava também diversos outros versos da escritora, como é o caso ainda sobre liberdade:
‘A palavra liberdade
Vive na boca de todos:
Quem não a proclama aos gritos,
Murmura-a em tímido sopro.’
… sobre opressão e injustiça:
‘Toda vez que um justo grita,
Um carrasco o vem calar.
Quem não presta, fica vivo;
Quem é bom, mandam matar.’
… sobre ganância:
‘os homens matam-se e morrem,
Ficam mortos, mas não fartos.’
… sobre o poder da palavra:
‘Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
Sois de vento, ides no vento,
No vento que não retorna,
E, em tão rápida existência,
Tudo se forma e transforma!’
Agora, em tempos de reclusão social por imposição da pandemia da Covid, busquei passar o tempo em boa companhia e me propus, inclusive, a reler algumas obras que considerava fundamentais na minha formação intelectual. Assim, acabei relendo o livro de Cecilia ‘Romanceiro da Inconfidência’. Um livro que deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas, notadamente, agora, nesses tempos sombrios que abriga o planejamento, nos compartimentos mais secretos dos palácios governamentais, da retomada sistemática das ideias conservadoras autoritárias. Cecília, portanto, é atual … atualíssima e necessária.