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QUANDO A MAIORIA SILENCIA ANUNCIA A OPRESSÃO

Magru Floriano

As eleições de 2022 vão ficar na história eleitoral brasileira como o momento em que a sociedade brasileira passou por um processo eleitoral onde apenas uma tendência política teve ambiente favorável a se manifestar publicamente. Quem andava pelas ruas do Brasil via apenas material de campanha dos nacionalistas de direita e ultradireita, ornando carros, sacadas de prédios, fachadas de lojas e camisetas de eleitores. Nem no tempo da Ditadura da Arena, na década de 70, tivemos uma ausência da manifestação da oposição de forma tão expressiva.

Mas o que levou a oposição ao governo ultradireitista silenciar de forma espontânea? Obviamente que foi a forma agressiva como essas manifestações democráticas eram recebidas por seus oponentes. Para os militantes da ultradireita todos os opositores ao Governo Bolsonaro eram, irremediavelmente, tachados de comunistas e inimigos do Brasil. Aquele que manifestava, mesmo que timidamente, seu voto a um outro candidato que não Jair Bolsonaro, era ofendido e hostilizado de forma agressiva, principalmente nas redes sociais [Facebook, Instagram, WhatsApp, YouTube, Linkedln, Twitter, Pinterest, Tik Tok, Skype, Snapchat, Messenger …]. Mesmo para os eleitores mais moderados, que optaram por candidaturas mais ao centro, fora da polarização esquerda-direita representada pelas candidaturas Luis Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro, o ambiente ficou por demais insalubre. Manifestar voto para Simone Tebet, Ciro Gomes, Felipe d’Ávila, Soraya Thronicke … era o suficiente para arriscar desencadear uma escalada de ações agressivas do seu interlocutor ‘bolsonarista’. Então, o silêncio foi o recurso utilizado pelos mais moderados para evitar esse conflito desnecessário ou abusivo.

Na década de 1960 a pensadora Elisabeth Noelle cunhou a expressão ‘Espiral do Silêncio’ justamente para explicar esse fenômeno que ocorre com uma pessoa ou grupo que tem opinião divergente. Noelle detectou inicialmente uma espiral do silêncio em subgrupos que tinham opinião divergente de grupos majoritários. O oponente, temendo a reação desfavorável da maioria acabava espontaneamente optando pelo silêncio como forma de evitar a represália e o mal-estar em seu próprio grupo. Era silenciar para não perder os amigos e espaços de sociabilidades.

A grande imprensa nacional acabou utilizando os termos ‘Voto Envergonhado’ e ‘Voto Silencioso’ para dar nome a esse fenômeno ampliado da ‘Espiral do Silêncio’. Um termo utilizado nos EUA durante a eleição Trump versus Biden. Na verdade, não se trata de vergonha do voto, mas apenas uma estratégia para evitar o incômodo com reações agressivas da militância de ultradireita. Uma pesquisa divulgada pela CNN assegurou que cerca de 53% dos usuários de Internet mudaram o comportamento nas redes sociais para evitar o conflito com amigos, familiares e parceiros de trabalho. As principais justificativas para o silenciamento espontâneo foram: medo de agressão físico-verbal; evitar constrangimento público; respeitar o outro; medo de comprometer negócios, emprego e relacionamentos; insegurança pessoal; evitar mal-estar em momento social determinado; medo de rejeição; evitar julgamentos desfavoráveis …

Como a militância da ultradireita ficou sozinha nas ruas e a visibilidade da campanha do candidato Jair Bolsonaro – principalmente ostentando a bandeira do Brasil – era expressiva, quando saiu o resultado da eleição ela não quis aceitar a realidade desfavorável e voltou à rua para contestar a lisura do processo eleitoral. Fecharam as principais rodovias do país e pediram – em nome da democracia – a intervenção constitucional das Forças Armadas. Em Itajaí, nos dias 31 de outubro e primeiro de novembro, fecharam a BR-101 e Rodovia Antônio Heil. No dia dois de novembro – feriado de Finados – convocaram os eleitores de Bolsonaro para uma manifestação defronte ao prédio da Capitania dos Portos, onde pediram que as Forças Armadas intervissem para não deixar o presidente eleito, Luis Inácio Lula da Silva, assumir novamente a presidência do Brasil, para ‘não deixar o Brasil cair em mãos de comunistas’. Ficaram acampados no local por cerca de setenta dias, rezando e discursando em praça pública, implorando por um Golpe de Estado.

Novamente a oposição calou e ficou em casa vendo tudo pela televisão. Justamente porque a oposição ficou assustada com a agressividade da ultradireita e buscou preservar sua segurança. Não havia espaço para o contraditório, para o diálogo, para a manifestação democrática do contraponto, da argumentação … qualquer manifestação oposicionista era sumariamente reconhecida como ‘coisa de comunista’ e um atentado contra o Brasil. Então, o silêncio reinou como reina a paz nos cemitérios. Mas essa gente não quer ver o óbvio: a maioria votou na oposição e, mais, muito mais, a maioria esmagadora reconheceu a vitória da oposição nas urnas. Uma parcela significativa dos eleitores de Jair Bolsonaro pensa assim também. Então sobra uma minoria radical de ultradireita, fascista, que não aceita parte do resultado eleitoral – sim, parte, porque só questiona a eleição que perdeu, sem questionar eleições que a situação saiu vitoriosa para deputado federal, deputado estadual, governador e senador – e, impõe o caos à sociedade brasileira.

Interessante perceber que esses manifestantes que fecham as rodovias, queimam pneus, enfrentam a polícia para pedir o golpe contra o sistema democrático empunham em grande número a bandeira brasileira com o seu vistoso lema ORDEM E PROGRESSO. Mas que ordem é esta? Que democracia é esta que silencia a oposição e deseja desesperadamente que as Forças Armadas golpeiem o Estado de Direito?

Uma coisa é certa: quando a maioria silencia, este silêncio está anunciando aos berros a opressão.

NOVAS ESTRATÉGIAS DE DOMINAÇÃO DE MASSA

Ninguém tem mais dúvidas sobre as mudanças que ocorreram no Brasil durante as eleições de 2022 no setor de comunicação social. Principalmente durante o período de propaganda eleitoral do segundo turno – mês de outubro – ficou claro para todos os estudiosos que está em evidência uma nova estratégia para se buscar o convencimento de grande parcela da população via instrumentos mediáticos, notadamente as conhecidas mídias sociais, como é o caso do Instagram, Facebook, You Tube, Messenger, TikTok, Twitter, Linkedln, Pinterest, WhatsApp, WeChat. O TSE concedeu, na última semana de campanha, nada menos do que 116 ‘direito de resposta’ à coligação de oposição no Horário Eleitoral Gratuito no rádio e Televisão.

Quem está provocando todas essas mudanças é a extrema-direita. Os pontos referenciais dessa estratégia midiática são os seguintes: 1 – produção em larga escala de fake news em estúdios; 2 – utilização da robótica para divulgação do material produzido; 3 – descredenciamento da imprensa convencional como canal de divulgação; 4 – utilização de redes de simpatizantes como replicantes automáticos dessas informações; 5 – rapidez na produção da informação para criar um círculo de produção/circulação/consumo de maneira que não haja tempo para checagem sobre a veracidade da informação; 6 – total impunidade para os replicantes e dificuldade extrema da justiça em alcançar as fontes originais das informações.

A todo esse mecanismo físico de rede acrescenta-se o discurso ininterrupto que visa o descredenciamento das instituições públicas e sociais como entidades avalizadas para interferir no processo. Congresso Nacional, Tribunal Superior Eleitoral, Supremo Tribunal Federal, mídias convencionais – televisão, rádio, jornal, perdem a capacidade de se apresentarem ao grande público como autoridades credenciadas para falar, opinar e orientar. Das instituições tradicionais sobra, para o grupo ideologicamente vinculado à direita, o discurso e o engajamento oficial das igrejas. Esse vínculo entre o discurso conservador e a igreja possibilita a atualização e avivamento de ideias superadas ao longo dos séculos, notadamente as que dizem respeito à condição da mulher na sociedade, liberdades individuais, direitos civis e estado laico.

A estratégia de inundar o ambiente com informações falsas/distorcidas produzidas em estúdios visa criar uma sensação de não se saber mais exatamente o que é verdade e o que é mentira. Com as instituições tradicionais desacreditadas, com a grande imprensa jogada no canto, em segundo plano, com a opinião do vulgo se sobrepondo à análise do especialista, com a religião rejeitando a ciência … temos um ambiente onde nada é passível de ser imediatamente detectado como fato/realidade ou falso/mentira. A ideia é confundir para reinar. Espalhar a mentira com tal intensidade que a verdade fique asfixiada. A pauta é sempre negativa, porque trata-se de estar sempre desmentindo, desfazendo, corrigindo. Há uma desconstrução da verdade/realidade e o estabelecimento do império da dúvida. Uma dúvida que acaba favorecendo quem pratica o mal porque solapa a autoridade das instituições.

A matéria-prima dessas informações criadas em laboratório são os próprios fatos, portanto, a ideia é sair da realidade para a distorção sistemática a ser reproduzida em grande escala. No segundo turno o candidato a governador de São Paulo – Tarcisio de Freitas – estava visitando uma escola na localidade de Paraisópolis – periferia da Grande São Paulo – quando a polícia trocou tiros com um grupo de marginais. Imediatamente a rede foi tomada por milhares de comunicados ‘urgentes’ assegurando que o candidato bolsonarista havia sofrido um atentado eleitoral. Não adiantou as grandes redes de televisão e rádio divulgarem a versão correta – identificando o episódio como ocorrência policial corriqueira – na rede correu como rastilho de pólvora a versão fake de que Tarcísio tinha sofrido atentado.

O mais interessante desse processo de divulgação de fatos distorcidos em estúdios é que as pessoas comuns que replicam o material disparado por redes robóticas não possuem qualquer compromisso em desmentir a informação depois de constatarem que tudo não se tratava de apenas mais um caso de polícia. Essas pessoas já estavam preocupadas em divulgar a mais nova fake news, a mais nova novidade, a próxima … e a vida segue.  Há pressa em se divulgar a informação truncada, mas não há qualquer compromisso ou interesse em desfazer o erro. Isso porque não se trata exatamente de um erro, já que a informação foi divulgada por tratar-se de material de interesse ideológico de campanha. A fake news é sempre uma informação que interessa ideologicamente a quem a replica. A essa pessoa não interessa se é verdade ou mentira, mas tão-somente se a informação está de acordo com seus interesses político-ideológicos. Não há compromisso com a verdade, mas com a campanha do seu candidato. Nesse ponto, há uma convergência de interesses entre quem produz a informação distorcida e quem a replica na rede.

As redes sociais viraram um grande monstro marinho ameaçando a livre navegação pelos mares democráticos. O Facebook conta com quase 3 bilhões de usuários, seguido pelo You Tube [2,56 bi], WhatsApp [2 bi], Instagram [1,45 bi], WeChat [1,25 bi], Messenger [1 bi], Tik Tok [970 milhões], Linkedln [830 mi]. Uma extensa rede internacional que faz a mensagem ser produzida em qualquer lugar do mundo para fugir da legislação local. O problema da interferência desse material internacional nas eleições brasileiras só não está sendo imensamente maior porque a Rússia invadiu a Ucrânia e, há um ano, colocou toda a sua inteligência interna a serviço da guerra. Estava previsto que aconteceria com o Brasil o mesmo que aconteceu na eleição entre Biden e Trump nos EUA, com um bombardeamento de informações oriundas da Rússia e países amigos visando interferir diretamente no processo eleitoral.

Por isso mesmo não é uma tarefa fácil às instituições combaterem essa prática predadora dos valores democráticos. Primeiro porque trata-se de material produzido por especialistas, gente que domina técnicas de comunicação de massa e sabe exatamente o que faz; segundo, há muito dinheiro disponível para estruturar a rede em nível internacional com uso da robótica; terceiro, a mensagem original é replicada por metade da população que se identifica com seu conteúdo; quarta, não há como colocar todos os replicantes sob a tutela da justiça obrigando imediatamente a correção do erro, criando um sistema de total impunidade; quinto, a própria justiça já foi anteriormente descredenciada/desacreditada como autoridade para interferir no processo. Os ataques sistemáticos ao TSE/STF fazem parte de toda essa lógica perversa que atenta contra o sistema democrático.

Mas qual a melhor estratégia para combater esse ‘gabinete do ódio’ produtor de uma infinidade de conteúdo distorcido visando solapar os alicerces democráticos? Não é uma tarefa fácil e ainda não se encontrou o antídoto ideal. TSE/STF, grandes mídias, ONGs, organizações internacionais … estão todos perplexos, desorientados, sem saber exatamente o que fazer para defender o sistema democrático sem utilizar medidas restritivas que possam, lá na frente, fazer com que o remédio aplicado em dose errada vire ele mesmo um grande veneno.

AS FRENTES DEMOCRÁTICAS COMO INSTRUMENTOS DE RESISTÊNCIA POLÍTICA

Participei ativamente da vida política desde tenra idade. Iniciei no movimento estudantil, passei pela militância partidária e mantive longa carreira profissional no jornalismo político. Nessas cinco décadas fui testemunha de três grandes ações visando à defesa do sistema democrático: MDB, Diretas Já, Frente Ampla Pela Democracia. Essas ações suprapartidárias tinham como característica principal a união de forças políticas, geralmente constituídas oficialmente em grandes partidos políticos, visando preservar, defender e reconstituir o sistema democrático.

A primeira grande ação suprapartidária com a qual convivi como partidário e como profissional da imprensa foi o MDB – Movimento Democrático Brasileiro. O MDB foi constituído em 1966 após o AI-2 – Ato Institucional Número Dois – instituir no Brasil o sistema bipartidário. As forças que apoiavam o governo ditatorial eram representadas pela ARENA – Aliança Renovadora Nacional -, e, a oposição representada pelo MDB. Portanto, o MDB era uma grande frente que abrigava em seu bojo todos aqueles que pretendiam restabelecer o sistema democrático golpeado em 1964. Reunia políticos e militantes da esquerda, centro e direita; de comunistas [como Miguel Arraes] a liberais [como Ulisses Guimarães].

Em 1983 a Ditadura da Arena havia perdido todo o apoio popular e não tinha mais condições de se manter no poder com uma linha autoritária que ainda permitia a sobrevivência legal da oposição. Sem apoio popular a Ditadura da Arena ficou em uma encruzilhada histórica, com duas alternativas: abrir para o sistema democrático, fechar radicalmente para constituir um regime totalitário. A ditadura branda, autoritária, já não era mais possível porque o povo estava nas ruas e praças e, o MDB começava a ganhar todas as eleições regionais, de governador a prefeito, de senador a vereador.

Foi nesse ambiente hostil ao autoritarismo que surgiu, em 1983, a Emenda Dante de Oliveira, exigindo do Congresso Nacional a volta da eleição direta para presidente da República. Na movimentação político-popular surgida no entorno da votação da Emenda Dante de Oliveira foi possível a criação de uma frente ampla visando restituir o sistema democrático. A derrota da Emenda no Congresso, fez surgir uma candidatura de oposição forte para combater o candidato da Ditadura da Arena no Colégio Eleitoral. Na eleição indireta ficou a disputa Paulo Maluf versus Tancredo Neves, com a vitória do oposicionista Tancredo Neves. O retorno ao sistema democrático era uma questão de tempo.

Agora, em 2022, vejo surgir novamente uma composição política suprapartidária visando à manutenção do regime democrático, ameaçado pelo avanço eleitoral das forças conservadores, representadas nestas eleições pela candidatura do presidente Jair Messias Bolsonaro. A Frente Ampla Pela Democracia é constituída por Lula [PT], Geraldo Alckmin [PSB], Ciro Gomes [PDT], Simone Tebet [PMDB], Fernando Henrique Cardoso [PSDB], Marina Silva [Rede Sustentabilidade / PSOL] e lideranças de diversos setores da sociedade brasileira, do esporte à economia.

O simples fato dessa frente se fazer necessária e viável já demonstra o ambiente político que atravessa o país.  O MDB e o movimento das Diretas-Já, enquanto frentes em defesa da democracia, surgiram em momentos de extrema tensão, onde a democracia estava completamente debilitada. Agora, não é diferente. Se a democracia não estivesse realmente ameaçada a Frente Ampla Pela Democracia, contando com FHC e Lula, Marina Silva e Alckmin … jamais seria possível.  Quando essas forças e personalidades se juntam é porque chegaram à conclusão de que se faz necessário deixar de lado as divergências para lutar em defesa de algo maior, no caso a democracia. Dessa forma, a simples existência de uma Frente Ampla já fala por si sobre o tempo político em que vivemos.