TARSILAPORU – xilogravura de releitura do Abaporu de Tarsila do Amaral produzida por Magru Floriano 2022.
Quando vejo alguma coisa nova acontecendo nos grandes centros, principalmente em São Paulo e Curitiba, cidades que costumo frequentar, sempre fico imaginando quando verei o mesmo acontecendo em Itajaí. Quando algo se estabelece como uma ‘tendência’ nos epicentros culturais do país é inevitável que a onda se espalhe e, mesmo demorando décadas, acaba chegando e influenciando nossas vidas nas bordas do mundo. A tendência seria como as ondas provocadas por um tsunami que ao chegar na praia vai levando tudo de arrasto.
Dia desses, para entrar em um edifício comercial de Itajaí tive de fazer um credenciamento de acesso: apresentar e permitir o escaneamento de documento com foto, preencher ficha, tirar fotografia – sem óculos e sem boné … Imediatamente veio à mente a experiência que tive em São Paulo, há mais de trinta anos, quando visitei uma empresa que vendia equipamentos para estúdio de rádio. Eu estava interessado em equipamentos para a montagem do laboratório de rádio do Curso de Comunicação e, também, para os estúdios da Rádio Educativa Univali FM, cujo processo de criação já estava em andamento em Brasília. Foi uma primeira visita a um fornecedor, mas fiquei tão pouco a vontade que sequer consegui falar direito com os representantes da empresa. Senti como se fosse um intruso, alguém não convidado para a festa. Uma sensação indescritível de estar fora do lugar. Providenciei para sair do local o mais rápido possível.
Depois, andando solitariamente pelas ruas de São Paulo, olhando todos aqueles edifícios, fiquei imaginando como seria difícil a vida em Itajaí se esta burocracia dos edifícios paulistas virasse uma tendência nacional e chegasse à nossa cidade. Demorou um bom tempo, mais de três décadas, mas chegou. E, ao fazer o meu credenciamento para acessar o elevador do edifício itajaiense, percebi o desconforto de muitos outros usuários que chegaram à portaria junto comigo. A reação deles foi muito próxima daquela que tive em São Paulo há décadas. Um desconforto e uma predisposição inicial de reagir, de reclamar, de considerar tudo aquilo uma inutilidade, um excesso de zelo, uma burocracia desnecessária, etc. Mas, a onda chegou à Itajaí, e veio para ficar em nome da segurança. Ponto!
TENDÊNCIA NAS ARTES
Circo do Festival de Inverno de Itajaí no pátio da Igreja Matriz.
Lutar contra uma tendência que chega a nós – como onda de tsunami cujo epicentro está em São Paulo ou Nova York – é lutar contra o inevitável. A tendência é uma onda forte que vai arrastar tudo e todos que estiverem à sua frente como obstáculo. Eu senti isso pela primeira vez em um Festival de Inverno de Itajaí, quando foi montado uma grande tenda de circo no estacionamento lateral da Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento para abrigar a exposição de artesanato e arte plástica. Eu apresentei um quadro com conteúdo abstrato – pintei durante as aulas do professor Dinyz Domingos, que tinha ateliê ali perto, em cima do Salão Paroquial – e sofri com o ‘estranhamento’ de todos. Uma frase avaliativa era recorrente: ‘Isso não é arte!’ Uma avaliação que já havia experimentado quando expus dois grandes desenhos na Biblioteca do Colégio Salesiano, por volta de 1975, e, também, durante uma exposição no térreo do Palácio Marcos Konder – antes de virar museu.
A crítica aos meus trabalhos abstratos e surrealistas era tão contundente e direta que acabou fazendo um efeito devastador sobre a minha arte. Assim, num determinado dia, coloquei tudo na lata do lixo e parei com todas as atividades de desenho, pintura, bico de pena … partindo para um exílio voluntário na literatura. Tudo, até 1978, praticamente foi para a lata do lixo. Bem, quase tudo. Isso porque meu primo, Edson Luiz Pedro, retirou do lixo da garagem da minha casa na João Bauer, um desenho intitulado ‘As mortes dos meus Eus’ e guardou por décadas. Um dia, visitando o seu estabelecimento comercial na Avenida Caninana, para minha total surpresa, identifiquei o desenho afixado na parede da loja, próximo ao balcão. Foi aí que fiquei sabendo do salvamento secreto da obra e seu aproveitamento na decoração da loja. Imediatamente pedi para ele me emprestar o quadro, fiz cópia e coloquei o desenho na capa do meu livro de poesias Fogo-Fátuo. Um outro desenho também salvo da lata do lixo – um autorretrato, com minha imagem nua navegando entre estrelas tendo um livro como nave – também foi salvo do lixo e virou capa do livro Como faço poesia. E é só. O restante do que estava em meu poder foi para o lixo mesmo. Esperava, sinceramente, que em companhia das obras fossem para a lixeira também as críticas das pessoas.
Mas aquilo que eu estava esboçando a partir de 1973 era uma tendência nas artes no Brasil desde 1922 – quando da Semana de Arte Moderna de São Paulo – e, portanto, era uma questão de tempo que se firmasse como novo paradigma estético também em Itajaí. Desde 1922 estava derrubado o academicismo e a obrigatoriedade de retratar apenas e tão-somente o real que fosse belo. Novos olhares – como é o caso do cubismo e do surrealismo – implodiram a hegemonia do clássico e suas vertentes. Dide Brandão já havia sinalizado essa tendência, mas entre seus anjos pés-descalço e a imagem de uma miss com seu vestido branco, todos preferiram destacar a obra de feição clássica, deixando em segundo plano os demais trabalhos feitos em linhas retas e traços econômicos. Ele transitou entre o acadêmico e o moderno, mas a obra que está em exposição permanente no Museu Histórico de Itajaí é o grande quadro da miss e seu grandioso vestido branco. Alguns exemplares de seus trabalhos modernistas estão afixados nos corredores da direção do Arquivo Histórico de Itajaí, na Casa Lins, amargando um quase exílio.
No período entre as décadas de 1970 e 1980 apareceu também a arte modernista de Osny Schauffert e um pouco de Érico da Silva. Não por acaso que Dinyz Domingos, cansado de explicar o valor da estética moderna, trocou a luminosidade dos seus galos coloridos pela paisagem bucólica tingida por nuances do vermelho dos flamboyants. Dinyz tinha o domínio técnico para ser um grande artista modernista, mas o mercado e a crítica empurraram ele para o ambiente bucólico. Quantas vezes ouvi seus arrazoados prolongados, durante aulas que tinha em seu ateliê, sobre o descaso que todos davam a trabalhos de traços mais econômicos e feições modernistas. Queriam o real do real, o figurativismo na sua essência – no rosto, na paisagem, nas imagens urbanas, nos objetos do cotidiano … – por isso os seus galos foram o máximo que se permitiu em termos de economia de traços. As pinturas luminosas dos galos eram a porta aberta para o modernismo, mas ele nunca adentrou por completo neste recinto.
Dide Brandão e Dinyz não conseguiram romper por completo a muralha conservadora, porque, está dito, nesses casos é necessário contar com a força inexorável do tempo. Com eles a terra tremeu, mas a onda devastadora do tsunami demorou muito tempo para chegar e estabelecer uma nova lógica nas artes itajaienses. Não é por acaso que eu mesmo fui integrar o movimento Cogumelo Atômico – que ocupou as praças de Brusque – e o Projeto Flor Morena – que ocupou as praças de diversas cidades de Santa Catarina, ainda na década de 1970, em plena ditadura da Arena. Ali, na vizinha cidade de Brusque encontrei um grupo disposto a romper barreiras, falar de arte surreal, popular, vanguardista e engajada.
Da década de 1980 eu pinço os nomes da paulista Marilina Bernal e do multifacetado Silvestre João de Souza Júnior como referências dessa luta pelo moderno nas artes em Itajaí. Marilina e Silvestre mostraram o caminho da pesquisa estética, do uso experimental de novos materiais. Quantas vezes visitei o meu vizinho Silvestre e fiquei horas escutando suas preleções sobre pesquisa de materiais. Destaco três linhas de pesquisa que lhe eram muito caras. A primeira dizia respeito a alquimia da queima de substâncias em busca da cor perfeita. Ele mesmo construiu um forno no terreno de sua casa na Rua Treze de Maio e, ali, em plena liberdade, experimentou queimas sucessivas em busca do tom e consistência ideal de suas cerâmicas. Era, não há dúvida, um alquimista em plena busca pelo que idealizou como forma e cor ideais na arte cerâmica.
A segunda linha de pesquisa de Silvestre estava na busca do jogo de sombra e luz obtidos na madeira através do entalhe. Ele havia feito estudos com o artista Zendron e por muito tempo utilizou as oficinas da Casa da Cultura como laboratório para aprender a harmonizar luz e sombra retirando pequenas lascas de madeira de uma superfície plana. O painel que está afixado na parede interna do corredor da Casa da Cultura Dide Brandão é, expressão desse esforço de Silvestre.
O terceiro ponto que merece destaque na criatividade artística de Silvestre é sua incessante disposição em experimentar novos materiais para compor suas obras. Quando fui diretor da Casa da Cultura de Itajaí [a casa ainda não tinha o nome de Dide Brandão], em 1983, eu e Silvestre íamos uma vez por semana, no meu fusca, participar de um curso em Joinville sobre a produção de papel-arte. Nossas conversas sobre experimentação de materiais se espalhavam pela BR-101 como os cantos dos bem-te-vis se espalhavam pelo campo. Depois de um tempo eu desejava mais ir a Joinville por conta do aprendizado que tinha com Silvestre durante a viagem do que propriamente pelo curso de produção de papel-arte. Cerâmica, papel, entalhe, desenho em bico-de-pena, montagens, instalações, instrumentos musicais, mosaicos … sua criatividade não tinha limite.
Eu avalio que foi com Silvestre e sua liderança no setor artístico de Itajaí – obtida já na vizinhança do século XXI – que o tsunami bateu na praia. A tendência de 1922 formada no epicentro paulista chegou à Itajaí e deu o golpe final no conservadorismo. A partir daí a hegemonia é da estética moderna. Os artistas com tendências clássicas e românticas sobrevivem até os dias atuais, mas perderam por completo o mando de campo. Saíram do centro do processo criativo e, até mesmo, perderam o controle da produção artística voltada para o mercado de artes. Um mercado que atualmente tem Walmir Binhoti, Augusto Raio, Wenceslau, Agê Pinheiro, Ademar Will, Vê Domingos, Fernando Pauler, Victor Lark, Silvana Rocha, Edmundo Campos, Wagner Kuhnem … como balizadores.
Não por acaso, agora, passados mais de cinco décadas da minha excursão pelas praças de Santa Catarina apresentando – junto com Jorge Grimm, JB Guedes, Aluísio Buss – obras modernistas [principalmente com tendência surrealista], volto meu esforço criativo para as artes plásticas. Montei um ateliê – contendo espaço para desenho a bico-de-pena, aquarela e, principalmente, uma oficina para a produção de xilogravura. Também abri espaço para uma galeria do artista itajaiense, contendo obras de Meyer Filho, Vê e Dinyz Domingos, Augusto Raio, Agê Pinheiro, Lindinalva Deólla, César Floriano, Wenceslau, Victor Lark, Walmir Binhotti, Lúcia Mendes… Também, não por acaso, uma parede foi reservada exclusivamente para afixar esboços originais de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Portinari. Esta pequena galeria fica de frente para a galeria dos artistas itajaienses e foi intitulada de ‘Aos mestres com carinho’. Nada mais precisa ser dito… e segue a tendência.