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O CELULAR COMO MÁQUINA DE TELETRANSPORTE PARA AS NUVENS

No mundo atual nada é mais emblemático do que o aparelho celular conectado à Internet que dá acesso às redes sociais. Tempo e Espaço são anulados pela mente que atende ao chamado de alguém que está em qualquer outro ponto do Planeta. A urgência de atender ao chamado é imperativa, autoritária, prioritária, condição de existência. Não importa se o sujeito está dirigindo em uma rodovia a cem quilômetros por hora, se está falando com o médico sobre seu câncer de mama, se está dirigindo uma moto ou bicicleta … o som da chamada do celular obriga necessariamente a atender, a dar prioridade, a deslocar-se para uma bolha fora da realidade objetiva.

Duas pessoas conectadas ficam suspensas no ar – como um holograma – conversando normalmente como se estivessem uma frente a outra.  Enquanto dura esse diálogo holográfico a pessoa não está presente ao corpo, é transportada para um outro espaço-tempo, mantendo apenas a presença corporal no lugar-tempo em que se encontra fisicamente. Seria um correspondente ao estado de coma de um paciente deitado na maca do hospital. Esse teletransporte mental retira da pessoa qualquer condição de sociabilidade presencial. Portanto, ao atender a chamada em rede, a pessoa opta por desconectar-se do mundo presencial para conectar-se ao mundo midiático. Um mundo cujo tempo-espaço tem existência nas nuvens – onde o sujeito é suspenso no ar como holograma.

Nos últimos tempos tenho testemunhado que as pessoas têm se mostrado mais irritadiças com a minha prática de não atender imediatamente às chamadas no meu celular. Se estou dirigindo, se estou conversando, se estou escrevendo ou fazendo minhas xilogravuras … deixo para atender o celular depois. Amigos, como Carlos Guérios e Amaro da Silva Neto, tomaram uma decisão ainda mais radical, optando simplesmente por não possuírem celular. São luditas e, portanto, exceções à regra geral estabelecida no mundo de hoje. Por outro lado, percebo que cada vez mais as pessoas começam a apresentar sérias dificuldades em contrariar as imposições estabelecidas pela máquina. Principalmente os mais jovens ficam impacientes, irrequietos, agitados, angustiados … se, por algum motivo imperioso, não podem atender às chamadas de suas redes sociais.

Nesse sentido, parece mais do que evidente que o celular mudou a lógica das sociabilidades. A pessoa que está presente, conversando, deixa de ser merecedora de receber a atenção plena e até de ter prioridade no diálogo. O diálogo com quem está ao telefone, na rede, corre paralelo ao diálogo com a pessoa presente, mas, contudo, ocorrendo uma escala de valores onde o diálogo presencial perde em importância para o diálogo midiático.  O diálogo presencial fica picotado, intercalado, interrompido no seu fundamento enquanto sociabilidade. Nesse ponto, o amigo presente tem de competir na conquista da atenção de seu interlocutor com uma horda de desconhecidos que estão habitando a nuvem midiática a qual ele está conectado. Há uma presença parcial, porque o interlocutor está presente fisicamente e ao mesmo tempo está conectado na nuvem querendo promover o feito de estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Dessa necessidade em estar conectado ao mundo real e ao midiático ao mesmo tempo resta alguns problemas em termos de sociabilidade. O primeiro deles diz respeito ao roubo de liberdade e constrangimento do exercício pleno do livre-arbítrio, porque há uma evidente impossibilidade psicológica do sujeito dizer não ao chamado da máquina. O sujeito considera que a chamada é impositiva e não atendê-la prontamente corresponde a uma falha grave a partir do seu modo de ver-se no mundo, seu conceito de ser social, de pertencimento do grupo. O segundo problema diz respeito à perda de qualidade na vivência presencial. Você está em um show musical maravilhoso, e, no lugar de aproveitar ao máximo aquele momento, fica preocupado em gravar e transmitir as imagens para seu grupo midiático. Você está em Paris e sua cabeça está cheia de preocupação sobre a fotografia que estará enviando para os amigos midiáticos. Você está em Paris com a cabeça na nuvem, você está diante do amor da sua vida com a cabeça na nuvem, você está vendo o artilheiro do seu time fazer o gol do título com a cabeça na nuvem… você está presente e não está presente, você está na terra e na nuvem, aqui e lá.

Essa presença em dois mundos ao mesmo tempo lhe tira qualidade de vida e a única forma de resolver essa questão é dar tempo determinado para o uso da tecnologia. Você tem de se educar a ponto de conseguir dizer não ao seu celular e sua rede de amigos midiáticos.  Ter tempo para estar presente e tempo para ir para as nuvens. Ficar ao mesmo tempo na terra e na nuvem é viver estranhamente entre o real e o midiático, em um mundo quântico de estar presente estando ausente ou, se preferir, estar ausente estando presente.

TENHO UM CELULAR, LOGO, EXISTO!

Algumas tecnologias são rapidamente incorporadas ao cotidiano das pessoas mais comuns sem que elas sequer tomem conhecimento do seu uso. Estão ali, servindo a todos, de maneira invisível, transparente, imperceptível, totalmente ocultas. Mas, existem sistemas e tecnologias que precisam da aquiescência e adesão direta do usuário para entrar em operação. Essas, geralmente, demandam mais tempo porque são incorporadas gradativamente ao longo de anos, partindo das classes mais esclarecidas em direção ao povão.

Boa parte dessas novidades não são incorporadas imediatamente pela simples e definitiva questão econômica. Afinal, não bastava ao pobre querer ver televisão ou ter uma máquina de lavar roupa, micro-ondas, geladeira. Esses bens do cotidiano doméstico tiveram de ser transferidos classe a classe, por descartes e, muito depois, pelo advento do crediário facilitado – que hoje deixa boa parcela da população simplesmente endividada à beira da inadimplência e refém do cartão de crédito.

Um evento extremo pode facilitar o processo de adesão a um novo sistema e tecnologia, de forma a pular décadas. O banco digital via celular não seria utilizado pela classe mais desvalida, porque ela ainda prefere o dinheiro físico. Acontece que a pandemia da Covid, a partir de 2019, levou muita gente a evitar aglomeração e locais fechados, jogando muitos para dentro dos sistemas do banco digital pagando contas por QR Code, pagamentos automáticos, boletos via email, etc. Agora, em 2022, o Governo Federal promoveu um ‘pacote de bondade eleitoral’ oferecendo bolsas de auxílio a caminhoneiros, taxistas … depositando dinheiro em contas eletrônicas com retirada pelo novíssimo sistema bancário nomeado de PIX.

Foi aí, então, que o pobre atendido pelo ‘Bolsa Família’ e o caminhoneiro, entre tantos milhões das classes baixa e média, se viram usuários do Banco Digital via celular e seu moderníssimo sistema de pagamento por PIX. Uma adesão que poderia demorar décadas foi consolidada no prazo de vinte dias, porque todos correram, nas pontas dos dedos das mãos, para ter sua conta digital e um celular. Agora, cem por cento da população tem celular e, nem todos têm o que comer, já que o auxílio do governo geralmente acaba na metade do mês.

O caso de uma criança que telefonou para a Polícia Militar garantindo que não tinha o que comer naquele dia é emblemático. Ele ligou para a polícia de um celular que estava em pleno uso por sua família que está cadastrada nos programas de ajuda humanitária do Governo Federal. Tinha um telefone celular funcionando enquanto a panela da família estava completamente vazia. Esse simples telefonema da criança escancara a realidade da pobreza no Brasil. Todos tem de ter o celular porque é através dele que chega o auxílio do Governo Federal. O dinheiro é eletrônico, em forma de PIX via banco digital. Assim, estabelecemos uma ideia bem simples sobre pobreza e tecnologia no Brasil, uma ideia adaptada de Descartes com o seguinte enunciado: ‘Tenho um celular, logo existo!’ pelo menos para o Governo Federal.

O FUTURO ESTÁ PRESENTE

Recentemente, três membros da minha família anunciaram que começaram a instalar equipamentos para coleta de energia solar em suas residências e estabelecimentos comerciais. Ali no bairro São Judas, na periferia da cidade, olho para a casa da minha irmã e vejo o seu telhado já tomado por placas brilhantes vindas da Alemanha. É o futuro se consubstanciando no presente. Contudo, fazendo um triste contraponto com este cenário de alto desenvolvimento tecnológico, os ladrões e os mendigos continuam nas esquinas da cidade. Uns, levando nossos celulares; outros, nossas moedas.

Minha geração viu o telefone fixo ser substituído pelo celular, a máquina de escrever pelo computador, a carroça pelo carro. Viu a Internet jogar na lata do lixo as enciclopédias Barsa e Delta-Larousse; o fim da era dos jornais impressos; as antenas de TVs dando lugar aos cabos de fibra ótica ou imagem por satélite; as TVs mostrando no mosaico mais de cem canais. E dizer que bem pouco tempo atrás eu era feliz vendo televisão duas horas por dia, quando era possível ‘pegar’ o sinal nas antenas caseiras sustentadas por varas de bambu.

Mas, agora, olhando para o telhado da casa de minha irmã na periferia da cidade, vendo-o todo coberto com placas coletoras de energia solar, fico pensando: qual será a próxima coisa do futuro que traremos para o nosso presente? Será o robô nosso mascote? Qual a próxima tecnologia que fará sua encarnação, sua passagem, entre futuro e presente para nos assombrar? O que o futuro está nos reservando para o nosso presente? Entregas domiciliares com drone; extinção de todos os documentos físicos de identificação e reconhecimento fácil; fim do dinheiro em cédula e moeda, cartão de crédito e débito … Será que estaremos, logo ali na frente, eliminando o prato de comida para incorporar o hábito ‘lunático’ de comer cápsulas?

Presentemente constato que o futuro chegou até mim de uma forma muito rápida. Quem sabe até, estou invertendo as coisas, pois teria sido eu que cheguei ao futuro apressadamente. A verdade é simples e direta como o é a realidade: tudo aquilo que se especulava em termos de conquista tecnológica na minha infância e juventude virou realidade diante dos meus olhos. Eu vi surgir no meu cotidiano o telefone e o celular; a televisão a cores, a cabo e por satélite; o carro elétrico e computadorizado; o xerox e o off-set; a máquina elétrica IBM e o computador; filmadoras, rádios e gravadores portáteis. Eu vi o disco de vinil sendo substituído pelo CD e DVD; a máquina fotográfica de filme sendo substituída pela máquina digital e, depois, pelo celular. Mas, agora já tem o drone que tudo vê, fotografa e filma …. e até mata.

Tudo o que era futuro para mim enquanto criança e adolescente, agora, é realidade. Muitas coisas, inclusive, já estão até ultrapassadas. Dia desse me desfiz de uma coleção de CD e fitas VHS, máquinas fotográficas digitais de pequeno porte, rádio portátil AM, máquina de escrever, TV de válvula … objetos que foram parar em mãos de colecionadores, esses aliados incondicionais de Chronos. Nessa caminhada eu andei de carro-de-mola, táxi e Uber. Andarei em um carro voador? É como se eu saísse da cidade dos Flintstones para visitar os Jetsons. É como se estivesse entrado dentro de um livro de Júlio Werner virando um de seus personagens. Eu estou vivendo no meu próprio futuro.