AS FRENTES DEMOCRÁTICAS COMO INSTRUMENTOS DE RESISTÊNCIA POLÍTICA

Participei ativamente da vida política desde tenra idade. Iniciei no movimento estudantil, passei pela militância partidária e mantive longa carreira profissional no jornalismo político. Nessas cinco décadas fui testemunha de três grandes ações visando à defesa do sistema democrático: MDB, Diretas Já, Frente Ampla Pela Democracia. Essas ações suprapartidárias tinham como característica principal a união de forças políticas, geralmente constituídas oficialmente em grandes partidos políticos, visando preservar, defender e reconstituir o sistema democrático.

A primeira grande ação suprapartidária com a qual convivi como partidário e como profissional da imprensa foi o MDB – Movimento Democrático Brasileiro. O MDB foi constituído em 1966 após o AI-2 – Ato Institucional Número Dois – instituir no Brasil o sistema bipartidário. As forças que apoiavam o governo ditatorial eram representadas pela ARENA – Aliança Renovadora Nacional -, e, a oposição representada pelo MDB. Portanto, o MDB era uma grande frente que abrigava em seu bojo todos aqueles que pretendiam restabelecer o sistema democrático golpeado em 1964. Reunia políticos e militantes da esquerda, centro e direita; de comunistas [como Miguel Arraes] a liberais [como Ulisses Guimarães].

Em 1983 a Ditadura da Arena havia perdido todo o apoio popular e não tinha mais condições de se manter no poder com uma linha autoritária que ainda permitia a sobrevivência legal da oposição. Sem apoio popular a Ditadura da Arena ficou em uma encruzilhada histórica, com duas alternativas: abrir para o sistema democrático, fechar radicalmente para constituir um regime totalitário. A ditadura branda, autoritária, já não era mais possível porque o povo estava nas ruas e praças e, o MDB começava a ganhar todas as eleições regionais, de governador a prefeito, de senador a vereador.

Foi nesse ambiente hostil ao autoritarismo que surgiu, em 1983, a Emenda Dante de Oliveira, exigindo do Congresso Nacional a volta da eleição direta para presidente da República. Na movimentação político-popular surgida no entorno da votação da Emenda Dante de Oliveira foi possível a criação de uma frente ampla visando restituir o sistema democrático. A derrota da Emenda no Congresso, fez surgir uma candidatura de oposição forte para combater o candidato da Ditadura da Arena no Colégio Eleitoral. Na eleição indireta ficou a disputa Paulo Maluf versus Tancredo Neves, com a vitória do oposicionista Tancredo Neves. O retorno ao sistema democrático era uma questão de tempo.

Agora, em 2022, vejo surgir novamente uma composição política suprapartidária visando à manutenção do regime democrático, ameaçado pelo avanço eleitoral das forças conservadores, representadas nestas eleições pela candidatura do presidente Jair Messias Bolsonaro. A Frente Ampla Pela Democracia é constituída por Lula [PT], Geraldo Alckmin [PSB], Ciro Gomes [PDT], Simone Tebet [PMDB], Fernando Henrique Cardoso [PSDB], Marina Silva [Rede Sustentabilidade / PSOL] e lideranças de diversos setores da sociedade brasileira, do esporte à economia.

O simples fato dessa frente se fazer necessária e viável já demonstra o ambiente político que atravessa o país.  O MDB e o movimento das Diretas-Já, enquanto frentes em defesa da democracia, surgiram em momentos de extrema tensão, onde a democracia estava completamente debilitada. Agora, não é diferente. Se a democracia não estivesse realmente ameaçada a Frente Ampla Pela Democracia, contando com FHC e Lula, Marina Silva e Alckmin … jamais seria possível.  Quando essas forças e personalidades se juntam é porque chegaram à conclusão de que se faz necessário deixar de lado as divergências para lutar em defesa de algo maior, no caso a democracia. Dessa forma, a simples existência de uma Frente Ampla já fala por si sobre o tempo político em que vivemos.

O CELULAR COMO MÁQUINA DE TELETRANSPORTE PARA AS NUVENS

No mundo atual nada é mais emblemático do que o aparelho celular conectado à Internet que dá acesso às redes sociais. Tempo e Espaço são anulados pela mente que atende ao chamado de alguém que está em qualquer outro ponto do Planeta. A urgência de atender ao chamado é imperativa, autoritária, prioritária, condição de existência. Não importa se o sujeito está dirigindo em uma rodovia a cem quilômetros por hora, se está falando com o médico sobre seu câncer de mama, se está dirigindo uma moto ou bicicleta … o som da chamada do celular obriga necessariamente a atender, a dar prioridade, a deslocar-se para uma bolha fora da realidade objetiva.

Duas pessoas conectadas ficam suspensas no ar – como um holograma – conversando normalmente como se estivessem uma frente a outra.  Enquanto dura esse diálogo holográfico a pessoa não está presente ao corpo, é transportada para um outro espaço-tempo, mantendo apenas a presença corporal no lugar-tempo em que se encontra fisicamente. Seria um correspondente ao estado de coma de um paciente deitado na maca do hospital. Esse teletransporte mental retira da pessoa qualquer condição de sociabilidade presencial. Portanto, ao atender a chamada em rede, a pessoa opta por desconectar-se do mundo presencial para conectar-se ao mundo midiático. Um mundo cujo tempo-espaço tem existência nas nuvens – onde o sujeito é suspenso no ar como holograma.

Nos últimos tempos tenho testemunhado que as pessoas têm se mostrado mais irritadiças com a minha prática de não atender imediatamente às chamadas no meu celular. Se estou dirigindo, se estou conversando, se estou escrevendo ou fazendo minhas xilogravuras … deixo para atender o celular depois. Amigos, como Carlos Guérios e Amaro da Silva Neto, tomaram uma decisão ainda mais radical, optando simplesmente por não possuírem celular. São luditas e, portanto, exceções à regra geral estabelecida no mundo de hoje. Por outro lado, percebo que cada vez mais as pessoas começam a apresentar sérias dificuldades em contrariar as imposições estabelecidas pela máquina. Principalmente os mais jovens ficam impacientes, irrequietos, agitados, angustiados … se, por algum motivo imperioso, não podem atender às chamadas de suas redes sociais.

Nesse sentido, parece mais do que evidente que o celular mudou a lógica das sociabilidades. A pessoa que está presente, conversando, deixa de ser merecedora de receber a atenção plena e até de ter prioridade no diálogo. O diálogo com quem está ao telefone, na rede, corre paralelo ao diálogo com a pessoa presente, mas, contudo, ocorrendo uma escala de valores onde o diálogo presencial perde em importância para o diálogo midiático.  O diálogo presencial fica picotado, intercalado, interrompido no seu fundamento enquanto sociabilidade. Nesse ponto, o amigo presente tem de competir na conquista da atenção de seu interlocutor com uma horda de desconhecidos que estão habitando a nuvem midiática a qual ele está conectado. Há uma presença parcial, porque o interlocutor está presente fisicamente e ao mesmo tempo está conectado na nuvem querendo promover o feito de estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Dessa necessidade em estar conectado ao mundo real e ao midiático ao mesmo tempo resta alguns problemas em termos de sociabilidade. O primeiro deles diz respeito ao roubo de liberdade e constrangimento do exercício pleno do livre-arbítrio, porque há uma evidente impossibilidade psicológica do sujeito dizer não ao chamado da máquina. O sujeito considera que a chamada é impositiva e não atendê-la prontamente corresponde a uma falha grave a partir do seu modo de ver-se no mundo, seu conceito de ser social, de pertencimento do grupo. O segundo problema diz respeito à perda de qualidade na vivência presencial. Você está em um show musical maravilhoso, e, no lugar de aproveitar ao máximo aquele momento, fica preocupado em gravar e transmitir as imagens para seu grupo midiático. Você está em Paris e sua cabeça está cheia de preocupação sobre a fotografia que estará enviando para os amigos midiáticos. Você está em Paris com a cabeça na nuvem, você está diante do amor da sua vida com a cabeça na nuvem, você está vendo o artilheiro do seu time fazer o gol do título com a cabeça na nuvem… você está presente e não está presente, você está na terra e na nuvem, aqui e lá.

Essa presença em dois mundos ao mesmo tempo lhe tira qualidade de vida e a única forma de resolver essa questão é dar tempo determinado para o uso da tecnologia. Você tem de se educar a ponto de conseguir dizer não ao seu celular e sua rede de amigos midiáticos.  Ter tempo para estar presente e tempo para ir para as nuvens. Ficar ao mesmo tempo na terra e na nuvem é viver estranhamente entre o real e o midiático, em um mundo quântico de estar presente estando ausente ou, se preferir, estar ausente estando presente.

O CLIMA ESTÁ MUDANDO, NOSSA MENTALIDADE NÃO!

Neste ano de 2022 já ocorreram três tempestades fortes, com rajadas de vento que alcançaram velocidade próxima de cem quilômetro por hora. Nossas sombrinhas foram estraçalhadas, telhados e coberturas voaram, outdoors foram ao chão e grandes placas publicitárias tiveram suas bases retorcidas, árvores foram arrancadas pelas raízes e jogadas sobre a fiação elétrica deixando milhares de consumidores sem energia por muitas horas. Mas as pessoas continuam fazendo de conta que não está acontecendo nada de extraordinário com o clima e a natureza, tentando tocar a vida dentro do que consideram a normalidade.

A verdade é que o clima está mudando. E mudando rapidamente. A temperatura está aumentando e a natureza já está reagindo de forma inequívoca. Enquanto a Floresta Amazônica está sendo devastada para dar lugar a pasto para criação de gado e para os grandes campos de plantação de soja, as grandes cidades estão asfaltando e cimentando tudo, retirando árvores das avenidas e sombreando toda a área urbana com prédios construídos um ao lado do outro, como favelas de sótãos e cortiços com elevadores. A cidade não respira. Os prédios formam corredores que facilitam o ‘encanamento’ do vento, tornando tudo ainda mais perigoso para os poucos que se aventuram a andar pela rua nesses dias tempestuosos.

O mais interessante é perceber que as empresas de outdoors continuam mantendo as mesmas técnicas rudimentares de décadas passadas, como se nada estivesse acontecendo de novo. As placas de zinco – postadas às margens das rodovias – são afixadas em cavaletes rudimentares feitos com restos de madeiras da construção civil. As coberturas dos postos de gasolina continuam recebendo placas de zinco finas e as placas publicitárias dos estabelecimentos comerciais são afixadas em uma base de alumínio que não resiste a um ventinho de cinquenta quilômetro por hora. Mesmo os grandes outdoors luminosos que são afixados em totens de ferro, aparentam uma falsa solidez estrutural – já que não foram projetados para ventos com velocidade superior a cem quilômetros por hora. Tudo isso voa sobre as cabeças das pessoas, transformando em uma grande aventura a simples ida à esquina para comprar pão.

Pior do que isso é perceber que está começando a se tornar corriqueiro ouvir relatos de janelas que despreendem dos edifícios e caem próximo aos transeuntes e carros. Com ventos acima de cem quilômetros por hora tudo voa: sombrinha, telhado, placas de publicidade e janelas. E as tempestades estão chegando com velocidades cada vez maiores, tornando corriqueiras expressões como tufão, tempestade tropical e extratropical, furacão, ciclone … Palavras que eram utilizadas, até bem pouco tempo, apenas para eventos climáticos que ocorriam na Ásia e Caribe, e, que víamos apenas na televisão.

O clima está mudando rapidamente e nossa mentalidade continua intacta. Continuamos comprando sombrinhas e ampliando nossa fronteira agrícola sobre o Pantanal e a Amazônia como se nada estivesse acontecendo. Temos facilidade em derrubar árvores e dificuldade em plantá-las. Alheia a tudo isso, a Prefeitura de Itajaí acaba de anunciar que vai plantar cem mil pés de flores nos jardins públicos da cidade. Derruba árvores para ampliar os espaços dos carros particulares e, depois, anuncia que vai plantar pequenas mudas de flores decorativas nos poucos canteiros que sobraram. Coincidentemente são flores que costumamos depositar sobre os caixões funerários.

 

TENHO UM CELULAR, LOGO, EXISTO!

Algumas tecnologias são rapidamente incorporadas ao cotidiano das pessoas mais comuns sem que elas sequer tomem conhecimento do seu uso. Estão ali, servindo a todos, de maneira invisível, transparente, imperceptível, totalmente ocultas. Mas, existem sistemas e tecnologias que precisam da aquiescência e adesão direta do usuário para entrar em operação. Essas, geralmente, demandam mais tempo porque são incorporadas gradativamente ao longo de anos, partindo das classes mais esclarecidas em direção ao povão.

Boa parte dessas novidades não são incorporadas imediatamente pela simples e definitiva questão econômica. Afinal, não bastava ao pobre querer ver televisão ou ter uma máquina de lavar roupa, micro-ondas, geladeira. Esses bens do cotidiano doméstico tiveram de ser transferidos classe a classe, por descartes e, muito depois, pelo advento do crediário facilitado – que hoje deixa boa parcela da população simplesmente endividada à beira da inadimplência e refém do cartão de crédito.

Um evento extremo pode facilitar o processo de adesão a um novo sistema e tecnologia, de forma a pular décadas. O banco digital via celular não seria utilizado pela classe mais desvalida, porque ela ainda prefere o dinheiro físico. Acontece que a pandemia da Covid, a partir de 2019, levou muita gente a evitar aglomeração e locais fechados, jogando muitos para dentro dos sistemas do banco digital pagando contas por QR Code, pagamentos automáticos, boletos via email, etc. Agora, em 2022, o Governo Federal promoveu um ‘pacote de bondade eleitoral’ oferecendo bolsas de auxílio a caminhoneiros, taxistas … depositando dinheiro em contas eletrônicas com retirada pelo novíssimo sistema bancário nomeado de PIX.

Foi aí, então, que o pobre atendido pelo ‘Bolsa Família’ e o caminhoneiro, entre tantos milhões das classes baixa e média, se viram usuários do Banco Digital via celular e seu moderníssimo sistema de pagamento por PIX. Uma adesão que poderia demorar décadas foi consolidada no prazo de vinte dias, porque todos correram, nas pontas dos dedos das mãos, para ter sua conta digital e um celular. Agora, cem por cento da população tem celular e, nem todos têm o que comer, já que o auxílio do governo geralmente acaba na metade do mês.

O caso de uma criança que telefonou para a Polícia Militar garantindo que não tinha o que comer naquele dia é emblemático. Ele ligou para a polícia de um celular que estava em pleno uso por sua família que está cadastrada nos programas de ajuda humanitária do Governo Federal. Tinha um telefone celular funcionando enquanto a panela da família estava completamente vazia. Esse simples telefonema da criança escancara a realidade da pobreza no Brasil. Todos tem de ter o celular porque é através dele que chega o auxílio do Governo Federal. O dinheiro é eletrônico, em forma de PIX via banco digital. Assim, estabelecemos uma ideia bem simples sobre pobreza e tecnologia no Brasil, uma ideia adaptada de Descartes com o seguinte enunciado: ‘Tenho um celular, logo existo!’ pelo menos para o Governo Federal.

O FUTURO ESTÁ PRESENTE

Recentemente, três membros da minha família anunciaram que começaram a instalar equipamentos para coleta de energia solar em suas residências e estabelecimentos comerciais. Ali no bairro São Judas, na periferia da cidade, olho para a casa da minha irmã e vejo o seu telhado já tomado por placas brilhantes vindas da Alemanha. É o futuro se consubstanciando no presente. Contudo, fazendo um triste contraponto com este cenário de alto desenvolvimento tecnológico, os ladrões e os mendigos continuam nas esquinas da cidade. Uns, levando nossos celulares; outros, nossas moedas.

Minha geração viu o telefone fixo ser substituído pelo celular, a máquina de escrever pelo computador, a carroça pelo carro. Viu a Internet jogar na lata do lixo as enciclopédias Barsa e Delta-Larousse; o fim da era dos jornais impressos; as antenas de TVs dando lugar aos cabos de fibra ótica ou imagem por satélite; as TVs mostrando no mosaico mais de cem canais. E dizer que bem pouco tempo atrás eu era feliz vendo televisão duas horas por dia, quando era possível ‘pegar’ o sinal nas antenas caseiras sustentadas por varas de bambu.

Mas, agora, olhando para o telhado da casa de minha irmã na periferia da cidade, vendo-o todo coberto com placas coletoras de energia solar, fico pensando: qual será a próxima coisa do futuro que traremos para o nosso presente? Será o robô nosso mascote? Qual a próxima tecnologia que fará sua encarnação, sua passagem, entre futuro e presente para nos assombrar? O que o futuro está nos reservando para o nosso presente? Entregas domiciliares com drone; extinção de todos os documentos físicos de identificação e reconhecimento fácil; fim do dinheiro em cédula e moeda, cartão de crédito e débito … Será que estaremos, logo ali na frente, eliminando o prato de comida para incorporar o hábito ‘lunático’ de comer cápsulas?

Presentemente constato que o futuro chegou até mim de uma forma muito rápida. Quem sabe até, estou invertendo as coisas, pois teria sido eu que cheguei ao futuro apressadamente. A verdade é simples e direta como o é a realidade: tudo aquilo que se especulava em termos de conquista tecnológica na minha infância e juventude virou realidade diante dos meus olhos. Eu vi surgir no meu cotidiano o telefone e o celular; a televisão a cores, a cabo e por satélite; o carro elétrico e computadorizado; o xerox e o off-set; a máquina elétrica IBM e o computador; filmadoras, rádios e gravadores portáteis. Eu vi o disco de vinil sendo substituído pelo CD e DVD; a máquina fotográfica de filme sendo substituída pela máquina digital e, depois, pelo celular. Mas, agora já tem o drone que tudo vê, fotografa e filma …. e até mata.

Tudo o que era futuro para mim enquanto criança e adolescente, agora, é realidade. Muitas coisas, inclusive, já estão até ultrapassadas. Dia desse me desfiz de uma coleção de CD e fitas VHS, máquinas fotográficas digitais de pequeno porte, rádio portátil AM, máquina de escrever, TV de válvula … objetos que foram parar em mãos de colecionadores, esses aliados incondicionais de Chronos. Nessa caminhada eu andei de carro-de-mola, táxi e Uber. Andarei em um carro voador? É como se eu saísse da cidade dos Flintstones para visitar os Jetsons. É como se estivesse entrado dentro de um livro de Júlio Werner virando um de seus personagens. Eu estou vivendo no meu próprio futuro.

 

A MEMÓRIA FEITA DE CARTÕES POSTAIS

No primeiro final de semana do mês de agosto [2022], fiquei de ‘cuidador’ da minha mãe Julita Garcia dos Santos – idosa de 93 anos de idade – respeitando uma escala entre irmãos para dar folga à cuidadora contratada para fazer companhia para ela durante o período noturno. Aproveite os dois dias para organizar a minha coleção de cartões postais de Itajaí em sete álbuns temáticos. A coleção é composta por cerca de trezentos cartões, alguns com quase cem anos de existência. Diante daqueles cartões, muitos ainda em preto e branco, Julita parece que se sentiu estimulada para liberar sua memória privilegiada e, a cada cartão que pegava em mãos, iniciava relatos de vivência de forma contínua e espontânea.

Ao ver um cartão com o navio Carl Hoepcke ela ficou mais contemplativa, mantendo a fotografia por mais tempo em suas mãos. Depois, em tom grave, sentenciou: ‘Eu conheci o Carl Hoepcke no Porto de Florianópolis. Não foi aqui em Itajaí, não, que vi esse navio pela primeira vez, foi em Florianópolis.’ Depois, ficou um tempo em silêncio, paralisada diante da fotografia em preto e branco do ‘Príncipe de Santa Catarina’ – como era conhecido o belo navio da Companhia Hoepcke. Por fim, falou em tom mais reservado: ‘A Bentinha – casada com o teu tio Pedro Floriano dos Santos – morava no Rio de Janeiro e pegou o Carl Hoepcke para ter a sua primeira filha junto à família aqui em Santa Catarina. Acontece que o esforço da viagem fez com que o trabalho de parto fosse adiantado e, acho que ela teve sua filha dentro do navio ou assim que pisou em terra. As vezes as viagens eram muito difíceis, porque as embarcações eram relativamente pequenas e as tempestades não davam trégua.’

Depois, falou sobre outros navios que conheceu durante toda a sua vida de casada com o marinheiro Sebastião Floriano dos Santos que passava boa parte do ano no Porto do Rio de Janeiro. ‘Naquele tempo a gente usava esses navios que faziam o transporte entre os portos brasileiros, principalmente Itajaí e Rio de Janeiro, para mandar e receber encomendas e até cartas. Telefone e telegrama eram muito caros e só uma pequena parcela da população tinha acesso a essas tecnologias de comunicação mais sofisticadas. O negócio era colocar tudo dentro dos malotes dos navios de cabotagem’.

Depois, Julita se deparou com um outro cartão postal estampando o navio Carl Hoepcke passando em frente à Praça Vidal Ramos com muitas pessoas dispostas à beira do rio saudando sua chegada ao Porto de Itajaí. Diante do novo cartão postal ela sorriu e sentenciou: ‘Sempre era uma festa a chegada desses navios porque era gente que chegava, encomendas, presentes, correspondências. Os navios movimentavam, com boas novas, a cidade pacata e sem muita diversão’.

Diante da experiência positiva que tive, agora, todas as vezes que fico de cuidador da minha mãe levo comigo os cartões postais. Assim, fica muito mais fácil conversar com ela e colher depoimentos sobre as sociabilidades da Itajaí de antigamente. Os cartões servem como um gatilho que aciona memórias.

ASSIPAM – PIONEIRISMO NO MOVIMENTO ECOLÓGICO

Neste meado de agosto [2022], recebo um telefonema do professor Gilson convidando para o evento alusivo à passagem dos quarenta anos da fundação da Assipam – Associação Itajaiense de Preservação Ambiental. Contando com a liderança carismática e visionária do professor Amaro da Silva Neto, a instituição foi a pioneira no enfrentamento contra o progresso desenfreado e desmensurado que a Região da Grande Itajaí assiste há quatro décadas. Um pioneirismo, infelizmente, que não contou com muito apoio, e, sequer, conseguiu sobreviver por muito tempo. Pior, ao fechar suas portas ‘nada ficou no lugar’ e o progresso grassa ‘livre, leve e solto’ como se não houvesse amanhã. Assim, é fácil concluir que a ASSIPAM faz muita falta para as cidades da Região da Grande Itajaí.

No dia 09 de setembro de 1982 o professor Amaro criou oficialmente a Assipam, contando com a participação de muitos jovens que aceitaram o chamamento da luta ecológica contra o crescimento desordenado das cidades da Foz do Rio Itajaí, notadamente Itajaí, Navegantes e Balneário Camboriú. No ano seguinte, eu respondia pela direção cultural da Casa da Cultura de Itajaí [ainda não tinha o nome de Casa da Cultura Dide Brandão], e, na medida do possível, emprestei à instituição e ao movimento ecológico o apoio logístico necessário, inclusive sala para reuniões e confecções de cartazes. Muitos eventos foram realizados e a juventude respondeu com certa rapidez aos chamamentos do jovem professor Amaro. Assim, a Assipam experimentou um breve tempo de efervescência.

Entre debates, passeatas, trabalhos de conscientização nas escolas …. ficaram registrados bem forte na minha memória os históricos acampamentos promovidos pela Assipam tendo como local o entorno do antigo prédio que abrigava o Cassino do Clube Guarani, na Praia Brava. Uma área ainda preservada, de frente para o mar, que começava a sentir os primeiros efeitos da especulação imobiliária desordenada e tóxica. Eu fui o sócio de número setenta e cinco da Assipam e contribui com essa instituição enquanto funcionário público e cidadão.  Não foram poucas as vezes que recebi pressão para inibir a ação da juventude que peripateticamente se reunia em volta do professor Amaro, considerada ‘horda de malucos, baderneiros e marconheiros’. Muitos pressionavam para que a Casa da Cultura não desse guarida à juventude que ensaiava os primeiros passos na luta pela preservação ecológica na Região da Grande Itajaí. Um pioneirismo feito de incompreensões, pressões ilegítimas e muita discriminação por parte da elite político-econômica.

Não é de se admirar, portanto, que a Assipam sobreviveu apenas quatro ou cinco anos … preservando-se apenas nas memórias de seus jovens associados [agora cinquentões e sessentões] e nos anais da história regional como a entidade pioneira em pautar a ecologia no ambiente tóxico do desenvolvimento caótica de nossas cidades. O professor Amaro era um visionário e, por isso mesmo, ficou na história como o primeiro grande líder ecologista da Região da Grande Itajaí.

AS MUDANÇAS RÁPIDAS NO CENÁRIO ITAJAIENSE

Condomínio Riverside – Rio do Meio

Dia desse fiquei surpreso, ao transitar pelos corredores da Univali, com a presença de tapumes de obras no local onde estava instalada a Lanchonete do Pedro. Um cartaz anunciava, para breve, um novo estabelecimento comercial. Para mim foi um choque porque a Lanchonete do Pedro era sinônimo de Univali, afinal de contas foram 43 anos de atividades ininterruptas. Mas, o mesmo sentimento temos quando caminhamos pela Rua Hercílio Luz, pela área portuária, pela zona rural … por Itajaí. Tudo muda numa velocidade tão extraordinária que dificulta nossa assimilação no mesmo tempo que nos exige a cidade. Do dia para a noite nos é exigido que coisas consolidadas em nossa vivência cotidiana passe automaticamente para a memória, como recordações de um passado que para nós ainda teima em ser presente.

Como nos é possível pensar a Univali sem a Lanchonete do Pedro? A Rua Hercílio Luz sem a Pastelaria Marilú e a Casa Irmãos Coelhos? A área portuária sem os pequenos bares e a Praça do Gonzaga? Nunca a cidade sofreu tantas mudanças em tão pouco tempo. Mudanças que roubaram o espírito comunitário da Rua Hercílio Luz, o ambiente boêmio da área portuária, o clima bucólico da área rural, o estilo de pequena cidade estabelecido numa vasta área periférica. Em dez anos Itajaí ganhou quase cinquenta mil novos residentes. Para abriga-los, casas vão ao chão para dar lugar a edifícios de trinta andares na Vila Operária, Dom Bosco, Fazenda, Cordeiros …. No interior, sítios e chácaras vão dando lugar a condomínios fechados de luxo – uma tendência que começou pela localidade do Rio do Meio.

E o Porto? Quanto da cidade ele precisa abocanhar para se manter economicamente viável pelos critérios da logística internacional? Agora, está iniciando o processo de engolir todo o trecho entre a rua Blumenau e a Canina até a Rua Max. Vai parar por aí? Vai poupar a Praça Gonzaga? Com uma mão enche o prato com quinhões de terra do Centro e Bairro São João; com a outra mão, pega ligeiramente pedaços generosos das margens das rodovias federais e estaduais. É um gigante, um verdadeiro titã, que não para de crescer. A cidade já está em plena titanomaquia e, ao contrário do que ocorreu na cosmogonia grega, está perdendo a guerra.

O que dizer, então, da Praia Brava? Aquilo ali já foi lixão de Balneário Camboriú, área de desova de ‘presunto’ e zona do meretrício. A praia era tão brava e perigosa que ninguém se aventurava em banhar-se nas suas águas. Muito das suas terras foi surrupiado por invasores inescrupulosos – que entupiram o Fórum da Comarca com usucapião e filigranas jurídicas até as cercanias do final do século vinte. Agora, é extensão do processo desenfreado de desenvolvimento de Balneário Camboríu. O ‘new point’, o ponto de ‘glamour’ e sofisticação da orla marítima de Santa Catarina. Morar na Praia Brava é sinal de status, requinte e bom gosto.

Ver um prédio de trinta andares em plena rua Indaial, no São Judas, portanto, é como ver o Farol de Alexandria em dia de neblina. Um edifício que agora está sozinho, dominando a paisagem, mas que logo ali na frente, terá as sombras de outros edifícios ainda maiores. Nos sentidos figurado e real, o céu é o limite. Se possível, o melhor é ir se acostumando.

DIÁLOGO DE MEMÓRIAS

Lendo o livro ‘Egídio Narciso, presença que não se apaga’ – autoria de Janete Narciso de Souza, Raquel Narciso Rosa, Humberto Rebello Narciso – tive uma das sensações mais incríveis que um leitor por sentir: perceber que sua memória está dialogando com as memórias dos autores do livro. Na medida que a leitura ia avançando, fatos relatados no livro iam se intercalando com fatos guardados na minha memória desde a infância.

O nome Egídio Narciso sempre foi uma constante na minha casa durante toda a infância. Meus pais e parentes tinham Seu Egídio como uma entidade, alguém que merecia destaque devido sua simpatia e carisma. Na família de minha mãe Seu Egídio era mencionado na condição de empregador, já que meus tios José Ramos Garcia [Zé Ramos] e Maria de Lourdes trabalharam na tradicional Casa Narciso – instalada na rua Hercílio Luz. Minha tia Dilma Garcia, por sua vez, era uma das costureiras de confiança de Seu Egídio e Dona Esther, muito recomendada para fazer os vestidos das clientes que compravam tecidos na Casa Narciso.

Na família de meu pai os Narciso eram lembrados por laços familiares. Meu tio, Pedro Floriano dos Santos, casou com uma irmã de Egídio, Tia Bentinha. Eles residiam no Rio de Janeiro, visto que Pedro era embarcado em navios de longo curso, fazendo regularmente a rota da Europa e América do Norte. Os Narciso costumavam passar férias na casa de Tia Bentinha, no Rio de Janeiro. Como meu pai, por longos períodos, também foi embarcado na Costeira, Alliança e Lloyd Brasileiro, com seus navios tendo o porto do Rio de Janeiro como principal base no Brasil, era comum utilizarem as frequentes viagens dos Narciso para troca de informações.

Esse conhecimento familiar levou meu pai, Sebastião Floriano dos Santos, a comprar a ideia de Egidio Narciso de investir em imóveis. Ele comprou de Egidio diversos lotes em Navegantes e Itajaí. Só não me recordo se os lotes que tinha em Balneário Camboriú também foram comprados do Egídio Narciso ou do Leopoldo Zarling. De qualquer forma o conceito de investimento meu pai adquiriu nas conversas que mantinha com Egídio Narciso. Nem sempre, obviamente, meu pai saiu completamente satisfeito com as compras que efetuara. No caso dos terrenos em Navegantes e Balneário Camboriú, por exemplo, lembro muito bem dele reclamando que o investimento não se pagava, já que os impostos iam aumentando muito mais do que a valorização do próprio imóvel. Sebastião pensava a curto prazo, enquanto Egidio pensava no longo prazo. Meu pai acabou vendendo esses terrenos por preços irrisórios, só pra se livrar dos impostos municipais – terrenos que hoje valem verdadeiras fortunas. O lado bom disso tudo é que ele usou o dinheiro que ganhou na venda dos lotes nas praias para comprar lotes em Itajaí. No final, imóvel por imóvel, ficou razoável para o Sebastião.

Ao término da leitura, fiquei um tempo com o livro na mão rememorando tudo o que passei na vida que, de uma forma ou de outra, estava ligado a Casa Narciso. Todas as minhas calças e camisas eram feitas pela costureira da família – Tia Dilma – e, os tecidos eram comprados, a maioria deles, na Casa Narciso, onde trabalharam o Tio Zé e a Tia Maria de Lourdes. E, por último, a ideia recorrente vinda dos diálogos com minha mãe, Julita Garcia dos Santos. Para ela, a Dona Esther era uma das mulheres mais elegantes da cidade.

APRENDENDO A DIRIGIR COM O ISAQUE

A primeira vez que peguei no volante de um automóvel foi no início da década de 1970, quando tinha meus quinze anos de idade. Meu pai estava me dando aulas teóricas de volante durante algum tempo até que, de forma abrupta e inesperada, parou o carro no acostamento da Rodovia Antônio Heil e me passou o volante. Diante do nervosismo de toda a família, principalmente de minha mãe, a aventura de dominar pela primeira vez o volante do AeroWillys não demorou mais do que uns dez quilômetros. Depois, tive oportunidade de pegar no volante de uma Kombi que meu irmão mais velho, Ilson, trazia para casa quando trabalhava em uma empresa de telefonia terceirizada da Telesc. Ao fazer dezoito anos comprei diversas motos de pequeno porte, começando com uma Mobylette e, depois, uma Yamaha dois tempos de oitenta cilindradas. A partir daí foi um sucessão de fuscas … A carteira de motorista veio sem muito esforço, fazendo o teste de volante e cumprindo a burocracia de praxe.

Mas, no mês de junho de 2022, fui operado do ombro e fiquei impossibilitado de dirigir por alguns dias. Diante da necessidade de viajar até Tubarão convidei meu amigo de viagens e literatura, Isaque de Borba Corrêa, para dirigir o meu carro até o Sul do Estado. Durante a viagem, nos trajetos de ida e volta, Isaque começou a repassar pra mim sua experiência no volante na condição de proprietário de taxi em Balneário Camboriú. Primeiro deu uma boa aula sobre ‘direção defensiva’. Uma aula cuja parte teórica tive na autoescola quando da renovação de minha carteira de motorista. Mas, a aula prática de Isaque realmente foi um diferencial a ponto de, hoje, me sentir mais confiante ao volante.

Ainda durante a viagem Isaque foi demonstrando, com exemplos bem didáticos, como dirigir visando – além da segurança com a adoção de uma direção defensiva – à economizar combustível. Sua técnica ao volante do meu carro fez com que gastasse metade do combustível que usualmente costumo gastar. Desde que retirei o meu carro Fiat Strada da concessionária, apesar de ser zero quilômetro, sempre reclamei que ele era muito gastador. Cheguei a reclamar na concessionária nas vezes em que ali estive para as revisões obrigatórias e o mecânico argumentou que o carro sempre gasta mais no período em que está ‘amaciando o motor’. Tudo bem, deixa pra lá.

A verdade é que chegava a gastar um terço de tanque para ir de Itajaí à minha casa de praia em Bombinhas; quase um tanque de gasolina para ir a Florianópolis; um montão de combustível para ir à Curitiba …. era normal gastar um tanque de gasolina por semana só andando dentro da cidade e fazendo pequenos percursos entre Itajaí, Balneário Camboriú …. Na viagem para Tubarão, passando pela Lagoa de Ibiraquera e a cidade de Laguna, andando sem parar durante dois dias, o Isaque não gastou um tanque de gasolina completo. Um feito memorável. Se fosse eu ao volante teria gasto dois tanques de gasolina, um para ir e outro para voltar. Aliás, essa era a programação que tinha feito para a viagem.

O primeiro detalhe que me chamou atenção na forma como ele dirigia era sua atenção ao volante. Ele realmente, não obstante conversar normalmente comigo, mantinha-se atento aos acontecimentos da estrada. Muito do que fazia era uma resposta antecipada daquilo que previa que outros motoristas iriam fazer. Nisso resultava que ele não acelerava [gasto de mais combustível] por prever que teria de desacelerar logo ali na frente. Passar marcha na hora certa, aproveitar as declividades do terreno para ajudar na aceleração natural, manter distância segura do carro da frente para evitar o uso do freio, buscar a velocidade ideal para cada tipo de estrada … enfim, recebi uma aula completa de um profissional do volante que mudou o meu conceito de dirigir.

Na verdade, hoje, considero que aos sessenta e cinco anos de idade, dirigindo desde os quinze anos, posso dizer que aprendi a dirigir. Vivendo e aprendendo.